O Governo pretendia transformar o sistema educativo num instrumento da ideologia política de género. Para isso, a maioria de esquerda aprovou uma lei que deixava à “discricionariedade” da administração educativa e dos governantes das áreas de género competências que pertencem ao Parlamento. “O diploma regula uma matéria nova que tem provocado debate público,” disse o Tribunal Constitucional. Só o Parlamento pressupõe o “pluralismo político,” a “publicidade do debate” e a “dialéctica deliberativa” que a legitimidade democrática exige. Conclusão: a lei foi considerada inconstitucional.

Alguns dizem que a decisão do Tribunal Constitucional é de somenos: que apreciou apenas as questões orgânicas da lei, deixando de fora a questão substantiva da proibição da programação ideológica do ensino pelo Estado. Mas não é exactamente assim. O diabo está nos detalhes: a ver vamos se a densificação normativa agora exigida vai conseguir superar o teste constitucional da ideologia. Por outro lado, a reserva parlamentar não significa que os deputados tenham carta branca para continuar a legislar às escondidas. Significa, acima de tudo, que há todo um grande debate público que está por fazer.

Mas não há razão para grandes optimismos. Bem vistas as coisas, o Tribunal Constitucional impediu agora que entrasse pelo portão do sistema educativo o “triângulo de género” que há anos a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e o Ministério da Educação estão a atirar pelas janelas das escolas adentro.

O triângulo de género, o que é?

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O triângulo de género tem na sua base os “estudos de género”. São assim chamados porque propuseram a distinção entre o sexo e o género. Ao “sexo” corresponderia a diferença biológica entre o “masculino” e o “feminino”. Já o “género” diria respeito ao modo como a desigualdade dos dois sexos é representada e construída na sociedade. O sexo seria biológico. O género seria, por assim dizer, o “sexo social”.

A “distinção” entre os conceitos de sexo e género foi importante para provar que os papéis sociais não são estáticos: nem os homens estão biologicamente predeterminados a ter uma carreira profissional, nem as mulheres têm de ser domésticas.

Mas os estudos de género não ficaram por aqui. Evoluíram para um sobredimensionamento do contributo da sociedade na sexualidade em desfavor do dado biológico. E concluíram, rapidamente, que o “masculino” e o “feminino” são, ao fim e ao cabo, realidades puramente sociais ou culturais. Ou seja: estudos que tiveram um início auspicioso com uma “distinção” teoricamente relevante, descambaram numa “separação” radical entre o sexo e o género, desvinculando a sexualidade da biologia.

Numa frase: os estudos de género propõem uma “nova antropologia” — em que o ser humano é uma espécie de brinquedo Transformer — destituída de qualquer prova médico-psiquiátrica validada pela ciência.

No segundo lado do triângulo, temos a “educação de género” nas escolas. A primeira coisa a saber é que ela não éuma disciplina ou sequer uma matéria escolar. Os alunos não são desafiados a conhecer ou discutir o sexo e o género ou a influência da biologia e da sociedade na sexualidade humana (discussão que, em todo o caso, só faria sentido a alunos de certa idade em diante e sempre sujeita à crítica racional).

Nada disso. A educação de género corresponde a uma mundivisão político-ideológica. Uma mundivisão alicerçadanos estudos de género e modelada, em Portugal, nos muito falados, mas insuficientemente conhecidos, “Guiões de Educação” que a administração educativa disseminou pelas nossas escolas. Pressupõe que todos os educadores de infância e professores partilham aquela mesma mundivisão. Pretende que todos os alunos, dos 3 aos 18 anos de idade, sejam a ela conformados.

Por exemplo: o educador de infância de 30, 40 ou 50 anos de idade vai tentar “trabalhar” com as crianças de 3, 4 ou 5 anos de idade com o propósito de questionar e pôr em causa modelos familiares que correspondem aos modelos familiares das crianças.

Outro exemplo: o professor de Filosofia do 10º ano vai propor aos alunos os textos de Platão e Aristóteles, não para ensinar o que os gregos pensaram e escreveram, mas antes para ensinar o que os estudiosos de género pensam sobre a filosofia de Platão e Aristóteles. Resultado prático: os alunos do 10º ano ficarão a saber alguma coisa sobre a mundivisão de género e nada sobre a Filosofia Clássica.

O triângulo de género é fechado com o lado que os outros dois já tornaram evidente: a “ideologia política de género”. Não há uma definição canónica de ideologia, mas acordemos nisto: uma ideologia é um sistema de ideias que pretende explicar o mundo e o lugar que o homem nele ocupa, ao qual se associa o activismo político.

Ficou já claro que a ideologia política de género tem o seu sistema de ideias orientado pelos estudos de género. Fica também claro que estamos perante uma autêntica ideologia — e não de uma ciência — dado que a nova antropologia proposta não resiste à crítica racional: nem da filosofia desenvolvida desde há 25 séculos, nem da ciência médico-psiquiátrica validada pelo método experimental.

Que a ideologia política de género é activamente promovida por organizações LGBT é um facto por todos conhecido. Aliás, a educação de género ocupa o lugar cimeiro nesta agenda LGBT: através do desenvolvimento de programas, planos de lição, estratégias, didácticas e materiais escolares; desenvolvimento e organização de cursos de formação para educadores de infância e professores; e intervenção directa e presencial de activistas em sessões promovidas em sala de aula e em visitas de estudo escolares.

A explicação do triângulo de género mostra bem que há ainda todo um debate que está por fazer com o contributo de todos: cientistas das áreas biomédicas, filósofos, investigadores das áreas sociais e políticas, juristas, profissionais da saúde, educadores de infância, professores, famílias e alunos.

Se a decisão do Tribunal Constitucional servir apenas para os deputados verterem em lei as normas que agora foram consideradas inconstitucionais, então não serviu para grande coisa. Se for o toque de alvorada da sociedade civil e partidos políticos para uma questão que é nova, polémica e complexa, então terá valido a pena.