Devem os cidadãos estar atentos à vida privada dos responsáveis políticos? Não me parece. A mera ideia de gravar a discussão entre Boris Johnson e a namorada é baixa. Levar à prática a gravação é desprezível. Publicar a gravação num órgão de comunicação social é infame. Mas há mais. Os políticos que vão a programas de entretenimento na TV expor a sua vida privada para ganhar mais uns votos também não estão a agir bem. E o mesmo sobre as pessoas comuns que se prestam a publicar nas redes sociais episódios da vida e fotografias de jantares, viagens e coisas do género. O voyeurismo já deixou de ser uma patologia. É o nosso modo de vida.

Mas o problema merece ainda outro ponto de vista. O carácter das pessoas tem relevância política? Devem os eleitores penalizar nas urnas os responsáveis políticos com mau carácter? Julgo que sim. Em primeiro lugar, porque a política não é uma técnica, não é um mero conhecimento dos melhores meios para se atingir quaisquer fins. Em segundo lugar, porque o carácter das pessoas não é separável em privado e público.

Dou um exemplo para ilustrar o primeiro ponto. Governar um povo não é o mesmo que construir uma aeronave de guerra. Um bom engenheiro aeronáutico pode ser um homem mau. Se tivermos até de escolher entre um bom engenheiro (que seja um homem mau) ou um mau engenheiro (que seja um homem bom), vamos naturalmente optar pelo homem mau que é bom engenheiro. A razão é óbvia: Exigimos ao engenheiro que conceba e construa uma aeronave segura e capaz de cumprir os objectivos de guerra. Pouco importa o seu carácter. O que não queremos é gastar dinheiro numa má aeronave que ponha em risco os tripulantes ou outras vidas humanas.

Já tudo é diferente no caso do responsável político. Ao contrário do engenheiro, a quem apenas cabe tratar dos meios de guerra, o político decide sobre os seus fins. A decisão do político não é técnica. Se o nosso representante eleito vai decidir sobre a guerra ou a paz, sobre a morte ou a vida da população de um país inimigo, não queremos certamente que ele tenha um carácter mau. A decisão do responsável político também não é meramente legal, pelo que não basta que ele seja um bom cidadão, cumpridor das leis de guerra nacionais e internacionais. Nós exigimos ao político que ele tenha a capacidade de ir além da mera legalidade e conseguir fazer uma boa avaliação das circunstância humanas contingentes que nenhuma lei positiva consegue prever.

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Nós queremos que o político seja um homem bom.

Estabelecido o contraste entre a técnica dos meios e a política dos fins, abro ainda um parêntesis para acrescentar o seguinte: Mesmo o engenheiro aeronáutico, a quem exigimos que seja tecnicamente bom e desculpamos a maldade humana, não pode ser destituído de uma boa dose de ética. Um bom engenheiro tem de ser uma pessoa responsável. Ora, a responsabilidade não é do domínio da técnica – é do domínio da ética. A responsabilidade é uma virtude. Pode não ser a mais cintilante das virtudes, mas não deixa de ser uma virtude.

Mas o que é a virtude? A virtude é daquelas palavras que se usa sem se saber ao certo o que é. Temos a ideia de que a virtude é uma coisa boa e que o vício – que é o seu oposto – é uma coisa má. Está certo, mas a virtude é mais interessante do que isso. A virtude é uma disposição interior que nos empurra a pensar, escolher e agir bem. É algo de estrutural em nós, estimulado pela boa educação que tivemos, que nos ajuda a responder bem às situações em que quotidianamente nos vemos envolvidos. Na medida em que as situações variam nos seus infinitos detalhes, não podemos comprar no quiosque um livro de receitas que nos diga “Se situação A, então resposta B.” A boa educação é insubstituível.

A ética e política estão ligadas por um cordão umbilical. O responsável político conseguirá responder tanto melhor às exigências do cargo que ocupa quanto mais habituado estiver a responder bem às diversas situações quotidianas da sua vida privada. A ideia de que um político pode ser um escroque na sua vida privada e um político bom na sua vida pública é uma fantasia ideológica. É um formalismo que, à semelhança de outras separações de índole liberal (política e religião, Estado e Igreja, público e privado), tem o seu lugar e por isso deve ser valorizado na sua justa medida. Mas também é um formalismo que derrapa muitas vezes na realidade íntima das coisas humanas e, por consequência, também deve ser combatido na sua justa medida. É o que acontece no caso do carácter: O carácter de uma pessoa não é separável em privado e público!

Mas então em que é que ficamos? Ficamos num equilíbrio instável, sem dúvida, mas sensato e realista. Estou de acordo que o episódio Boris Johnson não devia existir, resultando já de uma deformação do carácter dos vizinhos que fizeram a gravação e dos jornalistas que a publicaram. Mas que daqui não resulte a ideia adicional de que o carácter dos políticos é irrelevante ou que a sua vida privada não tem qualquer relação com a sua vida pública. Pelo contrário, daquele episódio só devemos mesmo concluir que a ética dos cidadãos e dos jornalistas também entra na equação.

Dentre os actos maus, há uns que são mais graves do que outros – e a gravidade conta. Por outro lado, há actos que se expressam de uma forma aguda e outros que se manifestam de forma crónica – naturalmente, a repetição insistente de um acto mau diz mais sobre o carácter de um responsável político do que um acto casual. Por último, um político pode revelar um mau comportamento numa situação a que está associada a desorientação de uma paixão particular (o prazer sexual, por exemplo) ou face a muitas situações associadas à desorientação de muitas paixões  – a avaliação do carácter de um político também não deve ser alheia à natureza, mais ou menos política, da paixão em causa ou ao número de situações em que ele revela ter mau carácter.

Cada caso é um caso. Também nós temos de saber responder bem ao que os diferentes casos nos pedem e saber a medida certa da penalização que devemos impor aos políticos de carácter duvidoso.

Nuno Lobo é licenciado em Filosofia