Alguém acredita que em Espanha, em França, na Grã-Bretanha um computador de serviço de um ministério com a tutela de boa parte das infraestruturas críticas do país teria sido retirado por um adjunto recém-exonerado sem que a polícia o tivesse impedido? Alguém acredita que, se fosse o caso, ainda mais no atual panorama global de ameaças, os respetivos serviços de informações não tentariam recuperar o dito computador o mais rapidamente possível? Não nego que o ex-adjunto tenha direito à sua defesa. Como não nego que cabe à polícia e aos tribunais apurar se houve uma violação da lei e por quem. Mas também temos o direito a não ver alvos vitais para a segurança de todos ameaçados por descuido ou ação deliberada, e, por isso mesmo, a ter serviços de informações eficazes.
A crítica e os seus limites
Há certamente o que criticar na forma como o ministro das infraestruturas geriu o despedimento do seu adjunto. Eu, por exemplo, teria recorrido ao Gabinete Nacional de Segurança, que tem responsabilidade primeira pela segurança da informação do Estado, e, por não envolver o SIS. Mas, sobretudo, pela péssima razão de proteger os serviços do possível despertar da síndrome da PIDE. Devia ser, no entanto, possível fazer estas críticas sem transformar um ex-adjunto num combatente pela liberdade e os Serviços de Informações de Segurança (SIS) numa nova PIDE, ideal para o papel de bode expiatório ou arma de arremesso político. Aparentemente a Procuradora Geral da República será mais uma vez chamada a adjudicar se era à “sua” Polícia Judiciária ou a qualquer outra que cabia agir, veremos se desta vez chega à conclusão de que há um papel legítimo para outras entidades. Mas se a conclusão de todo este processo for um amplo consenso político no sentido de restringir ainda mais o papel do SIS estaremos a colocar o país numa situação muito vulnerável num Mundo cada vez mais perigoso, e a desacreditar-nos numa dimensão fundamental perante os nossos aliados, já preocupados com as fragilidades portuguesas neste campo.
Por um debate sério sobre os serviços de informações
É inacreditável ouvir frequentemente repetido a respeito deste episódio que “qualquer um ficaria assustado com uma chamada do SIS.” É assim que líderes políticos responsáveis caracterizam um serviço do Estado democrático? E, já agora, “qualquer um” ficaria mais descansando com uma chamada ou uma visita noturna da Polícia Judiciária? E estamos, seriamente, a discutir nestes termos a atuação dos serviços de informações ou das polícias? Ou seja, quanto mais ineficazes melhor? Ou seria melhor mostrarmos todos alguma maturidade e fé no regime democrático, deixando de evocar fantasmas?
Mas se é para se falar da PIDE convém começar por deixar claro que ela era no nome, na lei e na prática uma polícia! É também importante recordar que outras polícias e magistrados judiciais colaboraram ativamente na repressão política da oposição antes de 1974. Não podemos confiar neles, hoje, devidamente ajustados a um Estado de direito democrático, por causa desse passado? O suposto regresso da PIDE não se resolve gritando “ó da guarda”, venha a polícia e a magistratura, abaixo os serviços de informações! O argumento de que não devemos ter serviços de informação para lidar eficazmente com as ameaças atuais, para exorcizar o fantasma da PIDE, é um disparate e uma irresponsabilidade perigosa.
É um facto indesmentível que o SIS não tem qualquer filiação ou inspiração na PIDE.
Aliás, em que é que recuperar um computador de serviço de um ministério tem alguma coisa que ver com as funções de polícia política da PIDE de reprimir brutalmente aqueles que manifestavam ideias contrárias às do regime salazarista? Este ex-adjunto tem tido algum problema em fazer as críticas que entende, onde entende, ao atual governo?
Portugal não está sozinho
Posso afirmar, sem receio de ser desmentido, que o SIS é o serviço deste tipo com menos poderes e competências dos nossos aliados na Europa democrática. A questão dos metadados, fundamental para o combate ao terrorismo, é apenas o exemplo mais gritante disso. Espero bem que a mudança necessária a esse nível não seja posta em causa por este “caso”.
Se se fizer uma interpretação restritiva da lei que rege o SIS, nomeadamente de que tudo aquilo que é feito pela polícia, nomeadamente pela PJ, não pode ser feito (com objetivos e métodos distintos) pelos serviços de informações, isso significa que na prática este serviço quase nada pode fazer do que é suposto: desde o contraterrorismo até à contraespionagem. Afirmar que lhes cabe apenas recolher informação, significa que cabe a quem, por exemplo, a contraespionagem? Apenas à Polícia Judiciária, a par de tudo o resto? E, já agora, com que segurança operacional, depois de vermos múltiplas investigações aparecerem na imprensa antes de chegarem a tribunal?
Uma das tarefas fundamentais e normais de um serviço como o SIS é, precisamente, a contraespionagem. Claro que grande parte destas missões podem e devem ser desempenhadas quer pelas polícias, quer pelos serviços de informações com lógicas e objetivos distintos. A polícia deve, sobretudo, garantir meios de prova de atividade criminosa. Os serviços devem, discretamente, procurar identificar e antecipar eventuais ameaças antes de se tornarem em atividades criminosas perigosas. Estranhamente há quem, desde já, esteja seguro de que não houve crime no caso do computador desparecido, mas com a mesma segurança afirma que quem devia tratar do assunto era a PJ. Porquê, se não houve crime? Este é um caso exemplar da zona cinzenta que é o campo de atuação normal, em qualquer Estado funcional, dos serviços de segurança.
O que fazer?
Primeiro, deixar claro, por escrito, e em todos os ministérios, o que fazer neste tipo de circunstâncias e a quem recorrer. Segundo, acabar com o absurdo de muitos ministérios, como seria o caso deste, terem segurança privada. É fundamental que seja a polícia – PSP ou GNR – a desempenhar essa tarefa. Quem se preocupa com privatizações excessivas devia começar por esta, da segurança do Estado. E, claro, garantir-se que estes policiais sejam devidamente instruídos sobre o que fazer. Terceiro, clarificar de uma vez as missões do SIS e do SIED e assegurar que a lei lhes dá efetivos poderes e claras competências para as cumprirem eficaz e legalmente. Não há que reinventar a pólvora, é seguir as melhores práticas das grandes democracias europeias, por exemplo, nos metadados, ou em melhorar os mecanismos de fiscalização dos serviços – por exemplo, com uma boa equipa de assessores credenciados para aceder a informação classificada. O que não podemos é correr o risco de ter uma lei excessivamente limitadora, aberta a interpretações ainda mais restritivas, que frequentemente atiram os serviços para a alternativa de arriscarem ficar vulneráveis a acusações de ilegalidade, ou não serem minimamente capaz de executar as suas missões. Quinto, é fundamental que haja uma estreita colaboração e efetiva coordenação dos diferentes organismos e instituições envolvidas na segurança nacional, deixando de lado capelinhas corporativas. Por exemplo, o contraterrorismo eficaz deve ir do soldado da GNR a patrulhar numa zona rural até à PJ e ao SIS. Algo que manifestamente ainda não acontece, nomeadamente pela ausência de uma permanente e efetiva estrutura do tipo de Conselho de Segurança Nacional, como já acontece na maioria dos nossos aliados. Multiplicam-se estruturas ditas de coordenação, dependentes de diferentes tutelas, que acabam, muitas vezes, descoordenadas. Nisso, este governo paga o preço da opção pela gestão ad hoc destes temas. A democracia não está em perigo neste caso. Já a nossa segurança, veremos.