“Would you tell me, please, which way I ought to go from here?”, asked Alice to Cheshire.
“That depends a good deal on where you want to get to”, said the cat.
Lewis Carroll, Alice in Wonderland
Depois de um período de relativa acalmia, com o Outono e o regresso à escola, ao trabalho e a um quotidiano gradualmente mais próximo da vida normal, o coronavírus decidiu revisitar-nos, colocando de novo sob tensão o funcionamento da sociedade e, sobretudo, os sistemas hospitalares. Vários países europeus têm tomado medidas de distinta latitude, que vão desde algum grau de confinamento, imposição ou recomendação do teletrabalho, fecho ou limitação do comércio, até restrições à circulação e à concentração de pessoas. Cabe a cada país encontrar a sua estratégia de abordagem e definir em função das suas próprias especificidades o ponto de equilíbrio entre os diversos fatores em jogo. Ao contrário do que ocorreu em Março, onde todos os governos estavam de alguma forma no mesmo ponto de ignorância face ao vírus, ao seu comportamento e às consequências concretas para a sua comunidade, chegados a Novembro, é possível e fundamental observar e aprender com as estratégias dos outros. Evitando, no entanto, que o que se faz “lá fora” se torne um “mantra” ou condicione excessivamente as soluções que devem, necessariamente, ser ajustadas às circunstâncias locais. Foi essencialmente nesta linha que nas últimas semanas o Governo português optou por tomar diversas medidas, desde a restrição de circulação entre concelhos no período específico das habituais celebrações religiosas de Todos-os-Santos e dos fiéis defuntos, até ao mais recente pacote de regras, a entrar em vigor a 4 de Novembro.
Com o aumento do número de contágios, a pressão e as dúvidas voltaram a ocupar o espaço público, com as expectáveis divisões entre os que recusam liminarmente aceitar qualquer gestão do vírus e os que entendem, no outro extremo, que não deve haver limites nas medidas tomadas numa guerra sem tréguas contra o inimigo invisível. Se a controvérsia em democracia é sempre saudável, uma ruidosa cacofonia acompanhada de uma significativa incapacidade em fazer a ponte na discussão, e a forte proliferação de notícias falsas, empoladas e/ou distorcidas, não têm ajudado a encontrar o frágil equilíbrio de que necessitamos enquanto comunidade para sobreviver ao vírus. Como tão bem escreveu Florbela Espanca, ficamos mais pobres quando as mesmas palavras nos servem para exprimir a mentira e a verdade, pelo que é nossa obrigação fazer um esforço adicional para dar o sentido correto às palavras e fugir do estigma em que vivemos desde que, como se descreve no livro do Génesis, a arrogância humana levou à decisão divina de confundir as línguas.
A necessidade de fazer um debate onde seja possível gerar consensos e equilíbrios, usando argumentos com verdade, não significa que devamos cair na fácil tentação do “cientismo”. É fundamental fazer um debate rico e plural, pelo que a discussão fica fortemente prejudicada se continuarmos a insistir, apenas, numa discussão até à náusea à volta de supostos critérios de eficiência, os quais, dadas as incertezas e o desconhecimento sobre as características do vírus e as suas várias consequências, imediatas, mas também mediatas, na saúde, na economia e na forma como nos relacionamos, tende a transformar o espaço público numa ruidosa Torre de Babel. A investigação científica deve fornecer elementos para a formulação de políticas públicas, mas não é possível evitar a gestão e ponderação de diferentes bens e valores. Uma ponderação que implica, necessariamente – e no sentido mais nobre do termo –, decisões assumidamente políticas, desejavelmente orientadas pela tentativa de salvaguardar e promover o bem comum em sociedades livres.
De passagem por Lisboa, e à conversa com um jornalista do Observador, Bernard-Henri Lévy fez questão de nos relembrar que, se é importante aceitar aquilo que nos é veiculado pela ciência, não podemos esquecer que ela é falível (pois não é teológica), sendo antes uma verdade em construção, um processo contínuo de melhoria que se faz “de erro em erro”. Recordando como nestas matérias, assim como em muitas outras, há um papel que está reservado para o exercício da liberdade.
A liberdade para muitos dos que sempre respirámos em democracia é muitas vezes apenas associada à possibilidade de fazer, de escolher, de usar o nosso próprio arbítrio para definir o âmbito das nossas decisões, sem ingerências externas. E se não há dúvida que ela é, na sua essência, um direito, muitos de nós estamos a viver um dos momentos mais radicais das nossas vidas, onde somos convidados pelas circunstâncias a perceber o papel que a responsabilidade tem no exercício da liberdade, o seu carácter moral, e as consequências que resultam do seu uso indevido.
O Governo de Portugal aprovou uma série de medidas, regras e processos que valorizam, de sobremaneira, o bom uso da liberdade, esperando – pedindo, até – que cada um de nós, no seu arbítrio, interprete a margem de manobra dada pelas regras de uma forma responsável. Essas regras foram objeto de crítica por parte dos que preferiam que o Estado limitasse de forma liminar a liberdade, prescindindo do arbítrio individual. Para poder equilibrar todos os interesses em jogo, faz sentido definir objetivos e regras gerais (naturalmente ajustáveis em função da evolução das circunstâncias), em vez de ordenar instruções e restrições particulares.
As soluções apresentadas têm o nosso apoio e simpatia, desde logo porque exibem o claro reconhecimento por parte do Estado que não está ao seu alcance, como que por magia, conformar a realidade por decreto. António Costa foi mais longe, afirmando expressamente que o recurso a soluções policiais e musculadas não resolvem e que pouco se poderá fazer se não houver, da parte de cada um, uma boa interpretação e execução das regras. Evitar o fatal conceit e fugir da convicção de que o político é capaz de moldar toda a realidade ao seu redor é algo que merece sempre ser celebrado, ainda mais quando tal resulta de uma opção política de um governo socialista.
O Governo, em vez de recorrer a soluções demasiado restritivas, optou por confiar na liberdade como forma de assegurar o frágil equilíbrio entre os múltiplos interesses em jogo, para assim tentar não os ferir excessivamente: tal decisão traduz-se numa grande responsabilidade para todos nós. Em momentos como o que estamos a viver, ser livre pode ser um fardo, um peso; não faltarão apelos a que o Estado decida e arbitre o que fazer ao pormenor, por cada um de nós, por parte de quem quer ter o conforto de não ter de decidir. Como bem refere Henri Lévy, há momentos na história humana em que a liberdade deixa de ser uma aspiração, em que muitos se coligam para desejar qualquer outra coisa, seja a servidão, a massificação de soluções que nos tomam a todos por iguais, ou simplesmente a submissão aos comandos de um mestre ou um mandatário que assuma a responsabilidade de decidir.
Somos assim todos convocados nesta altura para, cada um nas suas tarefas, colocar especial sentido de responsabilidade nas nossas decisões, não porque elas nos são impostas por uma qualquer autoridade estatal ou policial, ou lei avulsa, mas porque resultam de um exercício responsável da liberdade. Por nós e pelos outros. Usar máscara nos locais obrigatórios, higienizar as mãos frequentemente, manter o distanciamento social, recolher. Mantendo, porém, todos os nossos hábitos que continuamos a ser livres de exercer: frequentando dentro das regras restaurantes e espetáculos, passeando nos jardins, fazendo exercício físico, comprando nas nossas lojas de sempre, trabalhando com afinco, estudando esforçadamente.
Os que enfrentam esta crise em melhor situação – os mais ricos e os mais jovens – têm responsabilidades adicionais. Os mais ricos, não exigindo fechamentos egoístas que empurram para a pobreza os que não podem suportar meses a fio de suspensão do mundo. E também mantendo a sua normalidade de vida e de consumo, para ajudar a preservar o tecido produtivo. Os mais novos, menos expostos às consequências da infecção, evitando os comportamentos que levam a que o vírus se propague mais rapidamente.
Se exercermos com sentido de responsabilidade a liberdade de que dispomos e que fundamenta as opções do Governo, fizermos boas escolhas e mantivermos a serenidade, poderemos minimizar as múltiplas consequências do período negro que atravessamos: salvando vidas, salvando empregos.
Se nos próximos dias, pelo contrário, ignorarmos aquilo que nos compete, vencerão os inimigos da liberdade e, como reação, teremos necessariamente um maior fechamento com consequências negativas e desnecessárias: tendo presente que as soluções menos livres e mais autoritárias são sempre piores para todos.