Passo grande parte da minha vida profissional a analisar, a escrever e a discutir os riscos políticos associados à eleição de Trump, ao Brexit, ao Lava Jato, à possibilidade de Marine Le Pen chegar ao Eliseu e muitos outros assuntos. As más notícias dos últimos tempos exigem momentos de distração. Um dos meus divertimentos preferidos durante estas semanas tem sido observar a reação de muitos à eleição de Trump. Tom Friedman e Paul Krugman, com o alarmismo que os define, anunciaram o fim da democracia, não só nos Estados Unidos, mas possivelmente no mundo. Uma resposta estranha a uma eleição. Os editoriais do NY Times atacam um Presidente autoritário que irá violar os direitos humanos, ainda antes de Trump ter tomado posse.

Barbra Streisand prometeu, mais uma vez, emigrar para o Canadá (já havia prometido quando Bush filho chegou à Casa Branca). Para sorte dos canadianos, ainda não cumpriu a promessa. Cher lembrou ao mundo da sua existência, jurando que desta vez ia abandonar mesmo o “o planeta terra”. Esperemos que o faça discretamente. Madonna deixou de compreender os homens americanos. Prometeu sexo oral gratuito a quem votasse em Clinton e mesmo assim a maioria dos homens americanos votou em Trump.

Mas a indignação fácil do NY Times, o histerismo de Friedman e Krugman, e a incapacidade de Madonna de entender os homens não se comparam à reação de parta da esquerda europeia. Aderiu aos “valores liberais” contra a ameaça vinda de Trump. E olha para Merkel como a defensora do “mundo livre”. Não estou a brincar. É mesmo verdade. A esquerda converteu-se ao liberalismo e a Merkel. Foi o que nos disseram nas últimas duas semanas o Público, o El Pais, o Le Monde, o Guardian, o New Statesmen, o NY Times, os intelectuais em Londres, em Paris e em Lisboa, e os funcionários de Bruxelas. Obama até confessou que se fosse alemão votaria em Merkel. Pobre SPD, já nem o presidente Democrata votaria neles. Quem diria há seis meses atrás que a esquerda europeia estaria a defender o liberalismo e Merkel? Ninguém, obviamente. Só Trump conseguiria este milagre. Daí o meu agradecimento ao novo presidente americano.

Percebemos a dimensão desta transformação da esquerda se recuarmos a 2011. Nessa altura, segundo grande parte da esquerda, o mundo estava dominado pelo “fascismo neoliberal”. Os “liberais estavam a destruir o modelo social europeu”. Agora com a vinda de Trump, a esquerda esqueceu o “fascismo liberal” e agora quer lutar contra o “fascismo de Trump”. Para a esquerda há sempre um novo fascismo para combater. Quanto a Merkel, nos idos anos de 2011 e 2012, era comparada a Hitler. Em todas as manifestações das “ruas europeias”, surgia inevitavelmente um cartaz de Merkel com bigode. Lembram-se quando académicos e intelectuais prestigiados portugueses diziam que a única diferença era que Hitler havia invadido com tanques e Merkel invadia com a austeridade? E juravam que a diferença era irrelevante. Não estou a brincar. Foi mesmo assim. Agora a esquerda descobriu um novo Hitler nos Estados Unidos, Merkel tornou-se uma anti-fascista. Será que Louçã e as suas discípulas ainda vão olhar para a Chanceler alemã como a nova Rosa Luxemburgo?

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Por mim, só posso dar as boas vindas a todos aqueles que estão dispostos a defender o liberalismo e Merkel. Nunca deixei de o fazer, mesmo quando não era fácil, como depois de 2011. A esquerda percebe agora que aqueles que defenderam o liberalismo e Merkel afinal tinham razão. Mais vale tarde do que nunca. Devemos, no entanto, desconfiar das conversões rápidas e tardias. Por isso, deixo algumas questões para a ‘esquerda liberal e pró-Merkel’. Vai apoiar Merkel na defesa do acordo de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos contra Trump, que quer matá-lo? Ou vai juntar-se ao protecionismo de Trump contra o liberalismo de Merkel? Nas questões concretas é que se vê onde estamos politicamente.

De que lado se vai colocar a esquerda entre o aumento do défice público para financiar investimentos, defendido por Trump, e as políticas de austeridade de Merkel? Preferem a irresponsabilidade fiscal de Trump ou a responsabilidade fiscal de Merkel? Quando Trump, depois de chegar à Casa Branca, atacar as políticas de austeridade da zona Euro, o governo português vai apoiar o presidente americano? Mas uma vez, convém saber onde estará a esquerda nos debates sobre políticas fiscais que aí vêm.

Em relação à Síria, se Merkel defender a criação de corredores humanitários, certamente apoiada pelo novo secretário-geral da ONU, a esquerda defenderá intervenções humanitárias ou o respeito pela soberania nacional como faz Trump? E no caso da Ucrânia, a esquerda vai colocar-se ao lado de Merkel na defesa da auto-determinação nacional ou vai reconhecer, como Trump, as preocupações de segurança da Rússia? O que vai fazer o governo português quando for necessário tomar uma decisão sobre as sanções contra a Rússia? Vai apoiá-las ao lado de Merkel? Ou vai defender o fim das sanções como pretende Trump?

Por fim, um conselho de alguém que defende a Merkel há muito tempo. É absolutamente necessário fazer a distinção entre a justeza de muitas das posições de Merkel, as quais merecem ser defendidas, do aumento de poder da Alemanha. É um desafio difícil. Ora colocar Trump e Merkel num contexto da luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’ vai legitimar o poder da Alemanha e a sua hegemonia na Europa de um modo completamente novo. Aliás, já se percebeu, desde a eleição de Trump, que é essa a estratégia de Berlim. Mas quando Merkel partir, a Alemanha fica. E convém que não fique com demasiado poder.