Na cerimónia de assinatura do protocolo para a criação do Observatório do Racismo e Xenofobia, a recém-nomeada coordenadora desse organismo, Teresa Pizarro Beleza, disse ter a “convicção” de que existe racismo estrutural entre nós e acrescentou, à laia de prova, que até seria estranho ele não existir aqui “tendo (Portugal) sido um país colonial até há tão pouco tempo”. Adiantou, também, numa afirmação metida um pouco a martelo, que Portugal “foi um império colonial que usou o comércio de escravos para enriquecer”.

Há vários mal-entendidos nestas declarações de Teresa Beleza e é importante tentar desfazê-los porque muita da esquerda — e, até, de alguma direita — pensa total ou parcialmente dessa maneira. Começando pelo fim, terá Portugal, de facto, usado o comércio de escravos para enriquecer? E, se assim foi, porque é que sendo o país da Europa Ocidental que mais transportou escravos negros de África para as Américas — 4,5 milhões de pessoas — era, quando esse comércio foi proibido, um país pobre se comparado com a França, a Grã-Bretanha, a Dinamarca e outras potências coloniais ocidentais? É que a história humana é um feixe de inúmeras variáveis em interacção e há muitos factores a ter em conta quando falamos da riqueza e da pobreza dos países. Acrescente-se que a ideia de que o tráfico de escravos era um manancial de riqueza é geralmente falsa. Joseph C. Miller mostrou que até ao início do século XIX o tráfico de escravos luso-afro-brasileiro era, por norma, um comércio miserabilista de gente que se mantinha agarrada a ele porque não tinha melhor alternativa.

Mas ainda que fosse verdade que Portugal tivesse enriquecido com o tráfico de escravos, qual a relação entre esse suposto enriquecimento e o racismo estrutural que, na visão da coordenadora do Observatório do Racismo e Xenofobia, impregnaria o país inteiro? Teresa Beleza explicará, se assim o entender, mas para já fica a impressão de que tanto ela como os que como ela pensam, não criaram a convicção de Portugal ser estruturalmente racista a partir da observação e estudo dos fenómenos. Deduziram-na de uma teoria geral que, de forma sintética, é a seguinte: como o país teve um império colonial tem, por força, de ser estruturalmente racista.

É verdade que Teresa Beleza também reconheceu que o racismo existe em todas as partes do mundo, ainda que de maneiras diferentes e com histórias e lógicas muito diversas. Mas no caso português ele seria estrutural e decorreria do império colonial. Será verdade? Será obrigatório e fatal como o destino que país que haja possuído domínios coloniais nos trópicos tenha de ser estruturalmente racista? Esta pergunta faz-nos desembocar na questão do lusotropicalismo, um conceito que, de forma míope, tem sido conotado em exclusivo com o Estado Novo, o que é um erro. A ideia de que os portugueses tratavam melhor e mais igualitariamente os povos tropicais, incluindo os escravos, do que os outros europeus, é muito antiga. Essa convicção — lá temos nós outra convicção — existia nos séculos XVIII e XIX ou, até, antes, tanto em Portugal como no estrangeiro, e é tão válida como a actual convicção de Teresa Pizarro Beleza. E igualmente tão válida como a sua, é a minha convicção (e, também, a da ministra Ana Catarina Mendes e de outras pessoas) de que existem racistas em Portugal, sim, mas que o país não é estruturalmente racista.

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Ora seria bom que pudéssemos passar deste confronto de convicções, de outro modo estaremos apenas a chover no molhado das respectivas crenças. Infelizmente, o Observatório do Racismo e Xenofobia não parece ir nessa direcção nem querer subir esse degrau. Li, há dias, no DN, um artigo de Fernanda Câncio que conta que, no passado Carnaval, as escolas do concelho de Santarém, seguindo, ao que consta, directivas da Câmara Municipal, pediram aos seus alunos que se mascarassem de chineses, ciganos, africanos, índios, como forma de promover a interculturalidade. A esmagadora maioria dos alunos ou de quem vela pela sua educação aderiu ao pedido e houve muitas crianças que apareceram com as caras pintadas de castanho (blackface), outras com olhos à oriental ou com cabeleiras afro e saiotes de palha, etc.

Consultada sobre o assunto Teresa Pizarro Beleza terá dito que o caso evidenciava “uma séria falta de sensibilidade, de respeito e até talvez de inteligência (sic)”, e que o carácter de tais “brincadeiras”, ainda que talvez feitas na maior “inocência”, era “provavelmente ofensivo”, “historicamente explicável” e “obviamente racista”. A mim parece-me pouco razoável classificar imediatamente este episódio como racista, mas, ao que parece, o episódio de Santarém terá reforçado as convicções de Teresa Beleza, que assim se perpetuam, e não saímos deste círculo vicioso. Não sei se, antes de formar essas convicções, Teresa Beleza (ou alguém por ela) teve o cuidado de ouvir os intervenientes e decisores, mas suspeito que não, o que, a ser assim, é pena e lamento. Os woke, porém, rejubilaram com as declarações de Teresa Beleza e aqueles que tinham criticado a sua nomeação para coordenadora do Observatório por ser… branca e especialista noutros assuntos, enfunaram as velas de entusiasmo ao constatarem que tinham nela uma aliada.

Eu teria preferido um Observatório menos impulsivo que começasse por estudar aprofundadamente as coisas, para separar o trigo do joio, em vez de lhes aplicar pré-conceitos que as rotulam e condenam à partida. Sim, o blackface foi muitas vezes usado para ridicularizar os negros, mas será obrigatório que tenha de ser sempre assim? E quanto à indumentária? Terá de ser ofensiva por ser arcaizante? Se, no Carnaval, a escola dos meus netos pedisse para os mascarar de Gengis Khan, seria fácil e educativo explicar-lhes que os mongóis actuais não andam assim pelas ruas, mas que representá-los como se vestiam na Idade Média não é ofensivo. Se, sendo portugueses e brancos, se mascarassem de outros portugueses brancos de antanho, como, por exemplo, os saloios de 1900, seria isso ofensivo para os que, nos dias de hoje, são naturais da Malveira? Julgo que não. Do mesmo modo não deveria ser obrigatoriamente ofensivo representar as africanas em saiotes e outros trajes que muitas delas usavam, por exemplo, no século XIX. Isso não tem de ser necessariamente racismo.

Usa-se essa palavra a torto e a direito e muitas vezes mal. Há várias definições de racismo. Aqui, para respeitar o contexto e porque concordo com ela, vou cingir-me à que a própria Fernanda Câncio propôs e utilizou em 2019. Para Câncio racismo é uma “opinião” segundo a qual existiriam “raças humanas”, e, mais do que isso, uma hierarquia entre elas, com “raças superiores e inferiores”, raças essas que, segundo os racistas, definiriam as características dos indivíduos que a elas pertencessem. Ou seja, o racismo implica uma generalização cega e abusiva — todos os chineses têm tais e tais características, etc. — e uma hierarquização; implica também uma conotação ou intenção negativa para com alguns dos grupos hierarquizados. Ora, não ressalta da iniciativa das escolas de Santarém que se pretendesse retratar alguns grupos humanos como inferiores. Mesmo que possa ter havido opções de gosto duvidoso nas escolas em causa, parece óbvio que a intenção era positiva, isto é, e ainda que a brincar, o objectivo era tentar colocar as crianças de Santarém nos sapatos dos outros (neste caso das minorias cigana, africana, etc.) e promover através dessa representação uma melhor integração dessas minorias. O tema e o que procurava promover-se era, repito, a interculturalidade. Que não se perceba isto e que se faça em redor deste episódio uma tempestade num copo de água, só revela a que ponto o wokismo resvala constantemente para o radicalismo e a desmesura, por vezes para a idiotia.

O wokismo condena e amaldiçoa os estereótipos, queima-os na fogueira, como os inquisidores de outros tempos, mas o relacionamento humano usa estereótipos, sobretudo para fazer humor sem que isso signifique insulto e implique ofensa. Lembram-se de Hergé e do seu senhor Oliveira de Figueira, o comerciante português “banha da cobra” que impinge tudo a toda a gente? Sinto-me ofendido, como português, com essa representação do que somos ou fomos? Não, acho-a divertida e, até, com uma razoável dose de veracidade. Convém não perder de vista que as máscaras a que a iniciativa de Santarém se refere foram pensadas e postas em prática em tempo de Carnaval e que esse é um tempo que admite e suscita práticas particulares, que usa muitos estereótipos e que pressupõe e exige algum sentido de humor.

Eu sei que sentido de humor é coisa que os woke geralmente não têm, e já escrevi sobre isso. Ainda assim, e no pressuposto de que uma pequena sessão de grupanálise satírica poderá ajudar a esclarecer e compreender processos, eu recomendaria a Fernanda Câncio e a todos os woke e aparentados que, antes de se indignarem com episódios semelhantes ao de Santarém, vissem este pequeno vídeo da BBC sobre o que é ser sensível em excesso e virtuoso demais — ou seja, ser woke. Todos ganharíamos se interiorizássemos a lição que dali se colhe.