Ser cobrador de impostos sempre foi uma profissão difícil. As pessoas têm uma tendência, muito instintiva e pouco racional, a resistir a pagar impostos, que as leva a dizerem e fazerem coisas que em nenhuma outra circunstância diriam ou fariam. Às vezes tornam-se mesmo violentas. As centenas de revoltas camponesas de que há registo histórico no Japão, e as milhares que se conhecem na China, começaram quase sempre com um grupo de exatores fiscais a serem chacinados por populares enraivecidos. E nem vale a pena gastar pixéis a referir acontecimentos semelhantes na França e estados alemães na Idade Moderna.
Devido às dificuldades inerentes a ter de lidar com contribuintes, seres manhosos a ocultar proveitos e hábeis a encontrar subterfúgios, frequentemente exaltados e não poucas vezes irascíveis, para já não referir os desesperados pela penúria para que eram empurrados pela tributação do seu parco rendimento, que subjetivamente lhes parecia espoliação, o fisco teve de empregar, desde sempre, pessoas com caraterísticas muito especiais.
Para além de conhecimentos de aritmética e geometria, e alguma familiaridade com a legislação, as agruras das cobranças e os riscos corporais e pressões psicológicas a elas associadas, fez que ao longo da história tivessem sido homens, não mulheres, e homens duros e calosos, a exercer esta profissão crucial para o funcionamento do Estado, quer o tirânico, quer o de direito. Nela só se aguentavam aqueles que eram possuidores de traços de personalidade específicas: bruscos e brutos, para além de insensíveis, impiedosos, incompassíveis e inexoráveis. Flores de estufa nunca serviram para cobrar impostos. A literatura de todas as épocas e de todas as culturas testemunha a universalidade destas caraterísticas na profissão, e não deixa de ser curioso quão comum era os seus profissionais serem caracterizados como ratos, animais associados com rapina e destruição. Pessoas agradáveis, personalidades amigáveis e com carácter altruísta tendiam, portanto, a seguir outras carreiras.
Mesmo entre nós, ainda há uma geração atrás, quando avanços educacionais e civilizacionais já tinham amenizado em muito as relações dos cidadãos com os poderes públicos, não havia repartição pública a que o povo menos gostasse de ir que às finanças. Na altura de entrega de declarações de rendimentos, ou da liquidação do imposto automóvel, as filas eram mais longas que as dos liceus em época de matrículas, e o tratamento que os contribuintes lá recebiam tão cortês como o que um carteirista preso em flagrante delito poderia disfrutar numa esquadra.
Entretanto avanços tecnológicos tornaram obsoletas as deslocações às repartições tributárias. Hoje trata-se de quase tudo que tenha a ver com impostos através do Portal das Finanças, que se não é simpático, pelo menos não é malcriado e bruto. O Portal tem permitido à grande maioria da população evitar o contacto pessoal com funcionários da Autoridade Tributária, e a estes o ter de falar com contribuintes. Para o povo esta evolução contribuiu sem dúvida para o aumento do seu bem-estar e felicidade. E para os funcionários? Atendendo que a necessidade de contacto pessoal com os contribuintes diminuiu muito, é de supor que haja cada vez mais pessoas urbanas, simpáticas e empáticas a trabalhar nas finanças, mas faltam estudos de aferição de traços de personalidade para o comprovar.
Esta evolução, no entanto, não retirou o caráter odioso que o sistema tributário sempre teve, e será bom que o Portal das Finanças não faça os poderes públicos perderem consciência disso. Para essa consciencialização, e já que se está em plena época de entrega eletrónica das declarações de IRS, deixa-se aqui um poema do Livro de Odes, um clássico editado por Confúcio (孔子, 551—479 a.C.), a que um comentador antigo acrescentou a nota, “sobre a opressão e extorsão praticada pelo governo de Wei”, e é rededicado hoje ao Portal das Finanças, o nosso grande ratão:
“Ratões, ratões,
Não nos comam o painço.
Três anos vos demos de serviço,
e em troca recebemos indiferença.
Ireis perder a nossa presença,
vamos para uma terra feliz.
Terra feliz, terra feliz,
onde teremos lugar.
“Ratões, ratões,
não nos comam o trigo.
Três anos vos demos de paciência,
e em troca recebemos impaciência.
Ireis perder a nossa convivência,
vamos para um país feliz.
País feliz, país feliz,
onde receberemos justiça.
“Ratões, ratões,
não nos comam o grão.
Três anos vos demos de prontidão,
e em troca recebemos desprezo.
Ireis perder a nossa existência,
vamos para uma povoação feliz.
Povoação feliz, povoação feliz,
quem lá nos fará gemer?”
Pode ser que o Portal das Finanças tenha reduzido atritos entre cobradores e contribuintes. No entanto, uma carga fiscal excessiva continuará a gerar fuga aos impostos através de migração de várias atividades para economia paralela, hoje mais florescente que nunca nas áreas mais básicas do tecido económico nacional. E também fará diminuir a competitividade do nosso país, causando muito investimento estrangeiro, e numerosos profissionais nacionais com mais ambição, a fugirem para outras jurisdições, como os camponeses de Wei já faziam. Será bom não esquecer que curva de Laffer continua a funcionar hoje com a mesma inexorabilidade que há três mil anos atrás.
Professor de Finanças, AESE Business School