Procuramos sempre defeitos nos outros e secretamente ficamos contentes quando percebemos que valem menos do que nós. Ou achamos que valem menos que nós, claro. Enchemo-nos de vaidade e presunção de superioridade, de arrogâncias e demais falsas seguranças, e avançamos como se fossemos impolutos e donos da verdade. De todas as verdades ao mesmo tempo.
O mundo real e virtual está cheio de ‘haters’, gente que acima de tudo despreza e odeia mas, ao contrário do que imaginamos, esses odiadores não são só os outros. Se não tivermos cuidado com o que dizemos, fazemos e escrevemos, muitas vezes os outros podemos ser nós. Capazes dos mesmos ressentimentos e sentimentos mesquinhos, daninhos. Detestar, desprezar e odiar são verbos que se tornaram demasiado banais.
Guy Gilbert, francês e um dos “padres de rua” mais conhecidos na Europa (antes de Jacques Hamel ter sido degolado e passar a ser o padre francês mais conhecido do mundo), fundou um centro de acolhimento para jovens revoltados e suicidários, com quem lida diariamente. As realidades destes jovens são brutais e todos eles têm enormes resistências em perdoar. Guy Gilbert conversa demoradamente com cada um deles e conta-lhes histórias reais de perdão.
Apprends a Pardonner, traduzido para português como Perdoar as Injúrias, é o pequeno-grande livro de Guy Gilbert recentemente editado pela Paulinas Editora, que publicou uma colecção fabulosa das Obras de Misericórdia. Na introdução deste livro de bolso o autor começa por falar do perdão como pão quotidiano. “Temos tanta necessidade de pão como de perdão, tanta necessidade de perdão como de pão. Temos uma necessidade incessante de perdoar e ser perdoados, quer seja num casal, na família, na vida profissional, nas comunidades religiosas, quer na vida social e política. É um elemento muito importante da nossa sociedade, das nossas relações humanas”.
Independentemente do facto de sermos crentes ou descrentes, sabemos que Guy Gilbert tem razão. E mais, assistimos diariamente a acontecimentos que nos chocam, nos interpelam e obrigam a parar para rever a nossa capacidade de perdão. Posso perdoar ao meu pai e ao meu filho; ao meu amigo e ao meu vizinho; posso até conseguir perdoar àquele rival ou mesmo inimigo e, por vezes, sou capaz de me perdoar a mim próprio (tantas vezes o mais difícil), mas será que podemos perdoar aos grandes perversos? Será possível perdoar a quem mata, assassina e rouba a esperança? E será desejável? Se sim, como se faz isso sem parecermos parvos ou desprovidos de sentimentos e entendimento sobre a realidade social e política contemporânea? Não sei. Não faço a menor ideia e parece-me uma resposta extraordinariamente difícil de dar. Apenas sei que me faz sentido ver, ouvir e ler relatos de quem foi capaz de perdoar. Acima de tudo acredito que perdoar passa por rejeitar o ódio e aceitar continuar a fazer o bem, apesar de todo o mal que impera no mundo.
Quando falo de enunciados factuais de perdão falo de todas as comissões da verdade, perdão e reconciliação que se organizaram no pós Guerra e em zonas de grandes conflitos, sem os quais o mundo não teria sobrevivido, mas também falo de grupos e pessoas individuais que ao longos dos séculos optaram, e continuam a optar, por fazer a paz em vez de perpetuar as guerras. Grandes líderes e grandes pacifistas revelaram o essencial sobre o perdão. “Olho por olho e o mundo acabará cego” lembrou Gandhi.
É muito fácil enfraquecer e destruir. Os heróis são os que pacificam e constroem, disse Nelson Mandela. Todos guardamos na memória imagens inimagináveis de guerras e destruições, catástrofes e holocaustos, mas também todos temos para sempre presentes imagens porventura menos repetidas nos grande media, mas nem por isso menos poderosas. Gestos aparentemente tão pequenos e tão inocentes (e recentes) como os do rapaz português a consolar o adepto francês que chora desconsolado por ter perdido a final do Euro, podem parecer apenas impulsos repentinos e naif, mas acredito que são muito mais que isso. São verdadeiros gestos de proximidade e encontro. E são a prova de que é possível cultivar desde cedo um espírito solidário, um olhar atento e uma atitude de quem é capaz de dar passos para chegar ao outro, independentemente das suas crenças e paixões.
Ao contrário da esmagadora maioria de adeptos de futebol e outros desportos que facilmente fanatizam e obliteram consciências, este rapazinho deteve-se perante o choro convulsivo de um homem da equipa ‘inimiga’. E não o largou enquanto não sentiu o seu abraço e o viu secar as suas lágrimas. Só depois voltou à sua alegria e festejou a vitória do seu país.
Muito mais improvável que esta cena foram as declarações de Antoine Leiris, o homem que ficou viúvo nos pavorosos atentados de Paris, quando tornou pública a carta pessoal que escreveu aos terroristas garantindo-lhes que nunca teriam o seu ódio.
Por amor à sua mulher e ao seu filho órfão, prometeu a si próprio e aos outros que nunca nele germinariam sentimentos de vingança. Vous n’aurez pas ma haine, escreveu Antoine Leiris e o impacto da sua carta, bem como o eco das suas palavras foi forte e continua presente em quem viu e ouviu alguém que tinha tudo para declarar guerra e prometer retaliação, mas optou por cortar esse terrível elo da cadeia que nos prende à lógica do “olho por olho”.
No rescaldo dos mesmos acontecimentos de Paris, também ninguém esquece a cena de Angel e Brandon, pai e filho franceses de origem asiática, cujo diálogo foi por todos ouvido e memorizado como uma declaração de paz e tolerância.
Brandon, de 6 anos, interrogava-se sobre ‘os maus’ e dizia que se calhar tinham que mudar de casa para fugir deles, mas o pai sossegou-o em directo dizendo que não se inquietasse, pois a França era e continuaria a ser a casa deles. E quando o rapazinho alegou que ‘os maus’ tinham armas, o pai respondeu: e nós temos flores. Flores e velas.
Parece demasiado ingénuo? Não creio. Tentar fazer o bem apesar de todo o mal à nossa volta parece-me o caminho mais resgatador e construtivo. Claro que ninguém imagina que fazer o bem é ir a correr parvamente para tentar abraçar terroristas e bárbaros sanguinários, ou trazer para casa odiadores profissionais e gente que trafica pessoas, drogas e armas, espalhando o terror, como se fossem amigos. Fazer o bem sem artificialismos passa simplesmente por isso mesmo: por fazer bem o Bem, independentemente de todo o mal.
O Papa João Paulo II podia nunca ter perdoado ao homem que o tentou assassinar. Humanamente tinha legitimidade para nem sequer querer saber o seu nome ou a sua história de vida. Muito menos visitá-lo na cela para lhe expressar pessoalmente o seu perdão. Poucos de nós seríamos capazes de dar passos no sentido de estender a mão ao inimigo e, no entanto, esta atitude e estas imagens marcaram o século e permanecerão vivas e actuais ao longo dos tempos. Começaram por ser quase chocantes, porque todos temos um desejo natural de vingança, mas o Papa precisou de conhecer toda a miséria que havia por detrás do crime de Ali Agca e dos seus delitos. O ódio e a vingança devoram, mas o perdão pacifica. Acredito que este Papa já morto e santificado também precisou da pacificação interior depois de todo o sofrimento físico e moral por que passou na sequência da tentativa de homicídio de que foi vítima.
Nunca saberemos quem seríamos se tivéssemos tido a mesma infância e adolescência de muitos dos que matam e aniquilam. As sociedades estão cada vez mais cruéis e fracturadas, e importa dissociar os actos de quem os pratica. Soa difícil e é realmente extraordinariamente difícil, senão impossível. Pode não estar ao nosso alcance chegar a conseguir fazê-lo, mas penso que não podemos deixar de tentar. À pergunta sobre se existem monstros na Terra, Gilbert responde sempre: há seres humanos que cometem actos monstruosos.
Onde estão, então os pacificadores? Num mundo onde os maiores criminosos agem como se fossem os grandes justiceiros (ninguém duvida de que é esse o moto, o fundamento de todos os fundamentalistas), numa era em que os terroristas não estão preocupados com as pessoas nem com a sua morte, mas como diz Tomas Halík, com o efeito psicológico que a sua morte exercerá através das imagens dos meios de comunicação, pois sem essas imagens, os próprios ataques seriam apenas “um tema localizado e marginal”. Neste mundo e neste tempo em que “o triunfo da violência é o facto de esta se poder tornar visível e entrar virtualmente nas casas de milhares de milhões de pessoas em todos os continentes, espalhando assim o medo, tal como se pretendia”; neste planeta onde os desejados espaços de verdade dos media “foram conquistados pelo terrorismo moderno, passando a ser a sua arma mais poderosa e o principal instrumento da sua influência”, onde estão os pacificadores?
Todos temos direito à informação. Todos, sem excepção, temos o “sagrado direito à informação” como sublinha Halík, e não queremos nem podemos descartar as notícias boas e más. Acontece que os terroristas, estes homens e mulheres que “não esperam nem procuram a nossa aprovação, mas querem apenas o nosso medo” e exercem o seu tenebroso poder através dos meios de comunicação, não podem deixar-nos todos para sempre reféns do medo, do ódio e ressentimentos. Talvez, então, os pacificadores sejamos nós. Cada um de nós, através da maneira como usamos as redes sociais (reais e virtuais!) mas também através dos gestos e da atitude no dia a dia. Pacificadores nas palavras que escrevemos e dizemos. Ou calamos.