Com frequência, deparamo-nos com a rotulação fácil de opiniões, posições e trivialidades. Muito por consequência da acessibilidade da informação, a formulação de opinião tem-se confundido com a instantaneidade da reação assim como o posicionamento político-filosófico, anteriormente mais refletido e intelectualizado, se tem vulgarmente confundido com o que é os estados de espírito ou os apetites dos internautas ou mesmo abordagens mais ou menos predominantes.
A vida em fórum parecer-nos-ia enfim bem mais civilizada na Roma antiga, embora não deixe de ser uma inferência algo falaciosa. Tal como hoje, a vida romana dos fóruns estava igualmente corrompida pela ignorância comum e pela intriga e vícios das estruturas dirigentes, não deixando de ser curioso encontrar uma clara relação entre ambos. A ignorância consente a opacidade nos negócios públicos, em que a intriga e os vícios grassam, e depaupera não só a qualidade dos conteúdos como a própria extensão e escopo do debate. Mas poderá parecer pretensioso alegar que, numa sociedade de informação, a ignorância seja um padrão caracterizador da malha opinativa, tendo em conta a difusão relativamente bem-sucedida da escolaridade ou mesmo da abundante disponibilidade do conhecimento.
Não obstante, a ignorância enquanto fenómeno desdobra-se em várias camadas, se assim preferirmos. Ignoramos porque desconhecemos voluntária ou involuntariamente uma determinada realidade. Ignoramos porque não temos acesso a uma determinada informação ou mesmo à devida formação. Ignoramos por se tratarem de matérias que fujam à nossa área de especialização. Ignoramos matérias em profundidade, embora tenhamos contacto superficial com as mesmas. E por aí fora. Antes de mais, ignorar é sobretudo uma questão de perspectiva e de contacto. O presente ritmo de vida, acelerado e desestruturante, contribui em larga medida para uma certa ignorância do vasto mundo, cada vez mais complexo, que nos rodeia.
Não porque faltem meios, mas porque falta tempo. Esta falta de tempo potencia que, no nosso contacto diário com a informação, prefiramos uma síntese medíocre do que um bom texto longo, não estando por vezes necessariamente conscientes disso. A falta de tempo contribui forçosamente para a simplificação da comunicação dessa mesma informação abundantemente disponível, reduzindo argumentos complexos mas razoáveis a premissas incompletas e irrazoáveis. Naturalmente que o problema não subsiste somente na parte de quem transmite informação, mas também em quem processa e como processa essa informação.
Com esta última frase, retomo o escopo inicial do presente texto. A instantaneidade da reacção tem prejudicado a qualidade da própria formação de ideias, opinião e consciência. Estas formam inevitavelmente a nossa posição perante o mundo. Contudo, contrariamente ao que muitos acreditam e ao que certos veículos de informação e/ou movimentos fazem crer, a nossa posição não é de todo a nossa identidade. A conjugação global de elementos de ordem biológica (etnia, sexualidade), sociocultural (educação, estrutura familiar), económica (classe, rendimento), burocrática (identificação civil, nacionalidade), ético-normativa (quadro de crenças sejam elas religiosas, éticas ou filosóficas) define-nos, sim, a nossa identidade.
Identidade, essa que é pluridimensional, intransmissível, mas partilhável. O indivíduo A pode ser um católico, afrodescendente de classe média-alta com dupla nacionalidade. Múltiplos elementos identitários para o mesmo indivíduo, mas, embora outros possam partilhar desses elementos, não podem ter a identidade de A. Opinião não é Identidade, assim como não é Ideologia. Opinião é a expressão da nossa perspectiva sobre as coisas, sendo naturalmente influenciadas pelos elementos que nos definem, o inverso não acontecendo. Contrariamente ao que acontece com as opiniões, a nossa identidade não é suscetível de mudança, por muito que o construtivismo social alegue que sim. E mesmo quando parte da nossa identidade se encontra em questionamento, as suas vulgas “crises” são bem mais demoradas e complexas do que a simples reformulação de um argumento ou mesmo de uma visão sobre um determinado tema. Por esta mesma razão, as opiniões não moldam identidades, mas escudam-nas na interacção com os outros. Rotulam-nos e posicionam-nos num determinado contexto, o que seria saudável à partida.
O facto de podermos partilhar elementos identitários com diferentes indivíduos possibilita a constituição e a existência de grupos (ou facções, se se preferir) da mais variada natureza, duração e dimensão. Mas tal como nos une a certos indivíduos, também nos distancia e nos opõe a outros. Amartya Sen, proeminente economista e filósofo, argumentara que eram as “identidades reais” (os elementos supramencionados) aquilo que efetivamente definiam os indivíduos e, que num cenário extremo, poderia desencadear e até escalar um conflito intergrupal, distinguindo-as fundamentalmente de outros elementos que designou como “identidades mínimas”. As “identidades mínimas” eram, de acordo com a sua definição aqui sumariamente reproduzida, classificações socialmente convencionadas e muito associadas ao fenómeno da pertença por consumo. O exemplo usado por ele fora a distinção entre “raça” que era, na sua óptica, uma das “identidades reais” de um indivíduo e o número de calçado que seria a sua “identidade mínima”. Questões étnicas podem despoletar e escalar um conflito, mas não o número que um conjunto de pessoas calça. Assim posto, parece um argumento razoável.
No entanto, como outros autores têm vindo recentemente a argumentar e de entre os quais mais proeminentemente o historiador Yuval Harari na sua obra “Sapiens”, verifica-se a erosão ou redefinição de alguns elementos identitários (por exemplo, o sentimento de pertença a uma comunidade não pesa tanto como pesava há setenta e cinco anos atrás) e que o “vazio” deixado por estes proporcionou que as “identidades mínimas” de Sen ocupassem o seu lugar. Ou seja, hoje em dia, um jovem já não seria capaz ou não mostraria vontade de lutar e morrer pelo seu país, mas estaria disposto a participar num confronto tão ou mais violento com a polícia em defesa da claque do seu clube. “Identidades mínimas” como um Clube ou uma Marca deixaram de ser “mínimas” para, em alguns casos, adotarem a preponderância de “Identidades reais”.
Esta transmutação do quadro valorativo das sociedades ocidentais tem desencadeado fenómenos divergentes em forma, orientação e conteúdo, não deixando de coexistir no tempo e no espaço. Exemplo mais sonante será a dicotomia recuperada com acerbo entre o “progressismo”, das bandeiras da inclusividade, do multiculturalismo e da rejeição de muitas das “identidades reais” que se argumenta serem socialmente convencionadas e o chamado Conservadorismo Cultural, assente na defesa dos valores tradicionais ou próximos daquilo que seria o tradicional, a prevalência de uma ordem internacional baseada no Estado-Nação e na contraposição do “nós” contra “eles”.
A identidades não desaparecem, transformam-se através de processos socialmente abrangentes e historicamente demorados e violentos. Daí a validade do argumento de Sen primeiramente em distinguir entre o que são elementos identitários definidores do que são, se quisermos, elementos que nos posicionam face a um contexto. A nossa identidade vai ser sempre a mesma em diferentes contextos (embora se expresse através do elemento identitário que mais se adequa), sendo que, no caso das “identidades mínimas”, se esse contexto desaparecer, elas perdem sentido.
Por força do argumento até agora exposto, não deixará de ser importante observar o quão erradamente tem sido usado o termo de “conflito social” ou o seu antónimo “acalmia social” e correspondentes sinónimos para descrever retoricamente certos episódios. Não existe um confronto identitário assim tão forte que desencadeie um conflito social, como foi por exemplo a Guerra dos Trinta Anos no século XVII, mas existe sim o extremar de opiniões das massas, em muitos dos casos fruto da desinformação e até do conforto do anonimato e da instantaneidade da reação que a era das redes sociais possibilita, face a temas que questionam o quadro valorativo em que as ”identidades reais” assentam. Estes sendo conhecidos como “temas fraturantes”. Fraturantes porque criam clivagens ou divisões de opinião, sendo que clivagens ou divisões não desembocam em conflito. Se assim fosse, cada eleição democrática seria uma verdadeira batalha campal. Aliás, a título de nota, sociedades que acolhem diferentes identidades étnicas ou religiosas, concorrentes entre si, é que verificam episódios de violência no contexto de eleições, independentemente das correntes de opinião ou visões políticas que estejam em concurso.
O extremar de opiniões não deve ser tomado de ânimo leve, porque causam tensão social que, por sua vez, erode as bases da tolerância e pluralidades das democracias liberais ocidentais. E esta erosão fragiliza as instituições que permitem algo tão adquirido como a convivência harmoniosa de múltiplas identidades, muitas delas contrárias entre si, no seio de uma sociedade. No país em que, por exemplo, cronistas podem apresentar semanalmente a sua visão sobre matérias de género, também é importante fazer compreender que o contraditório existe e que, por outro lado, opiniões menos consensuais sobre as mesmas matérias de género possam ter lugar. Concordemos ou não com elas.
Antes mesmo da liberdade de expressão, existe a liberdade de pensamento e é imperativo que os agentes de comunicação social instruam os coletivos a apreciarem racionalmente a divergência de opiniões. É saudável indignarmo-nos com uma opinião que num extremo não concordemos. Não é saudável, por sua vez, indignarmo-nos ao ponto de essa opinião deixar de existir. É na moderação do debate social que se robustecem os tecidos sociais que compõem a essência das nossas democracias. E a democracia é, ou deve ser, o último reduto da salvaguarda da acomodação da pluralidade identitária por uma paz social duradoura.