Falar acerca da América a partir da política que nela existe é uma maneira de a compreender pouco. Eleger a política como o alfabeto que melhor nos apresenta a uma cultura é uma decisão bastante questionável. Imaginem, por exemplo, que alguém de fora se interessava pelos portugueses concentrando-se no que nos acontece na Assembleia da República. Quem seria o português animado pela ideia que se construiria acerca de nós vinda dos políticos que temos?

Neste tempo do Anticristo que nos calhou em sorte, materializado sobretudo através da internet, tomamos os assuntos da política como o latim moderno que supostamente mete o mundo todo a falar a mesma língua. Mas o latim moderno que é todos falarmos acerca de política dificilmente nos tem tornado mais sábios. Estamos todos mais faladores, é certo, mas com um vocabulário cultural cada vez mais rígido e pobre.

A política americana é a maioria do latim moderno que o mundo está capaz de falar. Não sou muito viajado mas ainda estou por conhecer um lugar de pessoas com opiniões brandas acerca dos americanos a partir da política que lhes conhecem (sejam opiniões negativas ou positivas). Desconfio por isso da fluência do planeta no idioma da política americana. Talvez quanto mais política americana seja dada às nossas línguas, menos compreendamos o que falamos.

Nesta semana lia um livro do Greil Marcus chamado “Invisible Republic”. É acerca das gravações que no final da década de 60 o Bob Dylan fez com a The Band e que ficaram conhecidas como as “Basement Tapes”. Um dos talentos do Greil Marcus é, tratando da música popular americana (obscura ou nem tanto), ser capaz de pensar na América dos seus Estados Unidos. Isto significa que, numa semana em que todos andámos de cabeça trocada a pensar nos americanos, o mesmo me aconteceu mas não tanto a partir da política. Pensei nos americanos nesta semana também à custa das canções que eles fazem.

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Greil Marcus cita Oliver Wendell Holmes dizendo que “os americanos são todos cucos, fazendo as suas casas nos ninhos dos outros pássaros”. E Marcus elabora a partir daí: “o americano [como cuco] é um necrófago invertido: violando a ordem natural das coisas, é pela sua natureza um outsider, uma criatura que não consegue pertencer. (…) O cuco torna-se o outro e vê todas as criaturas como o outro. (…) Exterminou os índios (…) [e] como criatura alienada da sua própria natureza, o cuco serve como espectro da alienação de um em relação a todos.” Reparem: estas conclusões antes de serem políticas são musicais, e a pretexto das velhas canções populares americanas que o Dylan e o seu gangue gravavam em delírio numa cave de Woodstock. Marcus é, por isso, certeiro: “as linguagens políticas da esquerda e da direita são em comparação [com as das velhas canções americanas] incapazes”. Para Marcus os Estados Unidos são uma república invisível que se mostra sobretudo nas suas mais arcaicas cantigas.

Achamos que os americanos são uns alienados e provavelmente é verdade. Mas os americanos não são alienados porque a política deles é necessariamente pior do que a nossa. Tivéssemos nós o espaço e o tempo americanos e provavelmente faríamos tão mau ou pior. A alienação americana intensifica-se e compreende-se pela sua história. E não deixa de ser curioso que é precisamente à custa de um triunfo da história americana na imaginação do mundo global que se despem as suas vergonhas à frente de todos. Os Estados Unidos, que ensinaram o mundo a viver do que se mostra na TV, são o reality show mais absurdamente apetecível. Ou seja: os americanos são os mais visivelmente alienados de todos porque construíram os meios de todos os terem como o maior espectáculo. Os americanos são a família louca do prédio que fica conhecido pela família louca que tem—o mundo de hoje é este prédio.

Quando ouço canções de outras terras, americanas ou não, desarma-se em mim a certeza de que a minha é a melhor. É por termos na política a presunção de uma língua universal que aumentam as superioridades morais de uns em relação aos outros. Tivéssemos um latim moderno menos baseado na actualidade e a apreciação do que nos é estrangeiro teria resultados menos depreciativos. Sim, os americanos são uns alienados. Mas viver ouvindo-lhes as canções alivia-me a tentação de querer mostrar melhores penas do que as daqueles cucos danados. Uma das nossas maiores pobrezas é a política como substituição do espiritual, o humano demasiado humano.