No rescaldo das autárquicas, as esquerdas negaram qualquer desaire: o PS ainda tinha mais câmaras, o PCP acrescentara umas centenas de votos em Lisboa, e o BE nunca fora, de facto, um partido autárquico. Portanto, tudo bem. Que todo esse comprazimento era de faz-de-conta, deduz-se agora da comédia orçamental a que o governo e os seus cúmplices parlamentares estão a sujeitar o país. O PS não cede, o PCP também não, e o BE ainda menos. Porque é que eles se fazem tão fortes uns contra os outros? Não porque estejam mais fortes, mas precisamente porque estão mais fracos.

O grande medo do PCP e do BE foi que, um dia, Costa se sentisse seguro para os sacudir e avançar para eleições antecipadas em busca de uma maioria absoluta. Agora, sabem que é improvável: nas autárquicas, mesmo com a poção mágica do PRR, Costa não evitou a derrota em Lisboa, nem o desaparecimento de 200 mil votos. Por isso, PCP e BE podem embirrar com o PS. E o PS, porque teima com eles? Por vezes, talvez tenha receado que PCP e BE persuadissem o eleitorado de esquerda a mudar a “correlação de forças”, como se diz no jargão militarista do leninismo. Não aconteceu em 2019, nem acontecerá: nas autárquicas, o PCP continuou a desaparecer, e o BE a não aparecer. Em suma, PS, PCP e BE têm cada vez menos medo uns dos outros, e daí as cenas entre eles; em contrapartida, têm cada vez mais medo de tudo o mais, e daí a improbabilidade de algum deles acabar com o arranjo que lhes dá acesso ao poder.

O poder do PS, do PCP e do BE tem este preço: a vida económica do país está fechada no Orçamento de Estado. Não me lembro de ver nunca tanta gente, nas televisões, na imprensa e nas redes sociais, a fazer contas ao que irá ganhar a mais ou a menos com as “medidas” orçamentais. É como se só através do orçamento os portugueses pudessem variar os seus rendimentos. Não vale a pena investir mais, nem trabalhar mais. O que vale a pena é perguntar ao contabilista quanto é que irá ou não render a alteração dos escalões do IRS. Em Portugal, é o poder político quem assim decide da vida de cada pessoa.

A comédia orçamental das esquerdas é o drama da nossa mediocridade. Vêm aí os milhões do PRR, que até darão para pôr umas janelas novas. Mas não é possível esperar mais, quando o que seria um ordenado médio-baixo no resto da Europa ocidental, ao alcance de um empregado de limpeza suíço (42 000 euros por ano), é aqui tratado como um rendimento milionário e sujeito pelo fisco a uma das taxas máximas de IRS (40,9%, contra 15,9% na Suíça). Os patrões não nos pagam mais, clama a esquerda. Mas não deveria clamar também contra o facto de o maior beneficiário de qualquer aumento, sobretudo se provocar mudança de escalão fiscal, não ser o trabalhador, mas o Estado?

Os parceiros da geringonça estão cada vez mais fracos, e toda a sociedade portuguesa, por causa do beco sem saída de estagnação e de dependência em que eles a encurralaram, está igualmente mais fraca. E não, não é apenas a posição de Portugal na hierarquia da riqueza europeia, onde todos os anos é ultrapassado por mais um país outrora pobre, que está em causa. Com a estagnação económica, é o modelo social que está em risco, porque não depende simplesmente da legislação, mas da riqueza produzida; com a dependência do Estado, é a democracia que está comprometida, porque não assenta apenas na consciência cívica, mas na autonomia dos cidadãos perante o poder. Nunca, nos últimos quarenta anos, uma mudança política foi tão urgente em Portugal. Que nos tirem depressa do meio desta comédia decadente.

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