Quem são os doentes mais esquecidos de todos? Aqueles que muitos prefeririam manter longe para não terem sequer que os ver e, muito menos, tocar e acolher. Os doentes entre os mais doentes, os que vivem desfigurados pela sua própria doença. Os que riem sem razão aparente, os de ‘sorriso alvar’, os que são capazes de viver com os olhos postos em coisa nenhuma. Os doentes psiquiátricos.

Há quem lhes chame doentes mentais e coisas muito piores, reduzindo-os à sua doença. Perpetuando o estigma de que sofrem. Colando-lhes rótulos sobre rótulos, usando-os para inventar anedotas parvas e multiplicar piadas idiotas, sem graça absolutamente nenhuma. Os homens e mulheres, rapazes e raparigas de todas as idades e condições que sofrem de patologia psiquiátrica complexa são os doentes que muitos preferem ignorar e manter à distância.

Conhecemos casos gritantes de pais e mães que esconderam os seus próprios filhos; filhos que se desligaram para sempre dos próprios pais; famílias reais (no duplo sentido, note-se) que os internaram longe da vista para se poderem esquecer que existiam. Sabemos tudo isto e podemos até viver chocados com a crueldade de todas estas formas de esquecimento, mas diria que uma esmagadora maioria de pessoas continua a ser incapaz de se atravessar por estes doentes para os confortar ou estar perto deles.

Também por isso impressiona muito conhecer quem voluntariamente se oferece para ir ao seu encontro. Falo de jovens universitários que dão o melhor de si e do seu tempo para que estes doentes não fiquem ainda mais distantes e, porventura, isolados do mundo. Abandonados, não diria que estão, pois os que vivem nas instituições de saúde são seguidos e acompanhados por profissionais de mão cheia, que escolheram estudar e formar-se para serem especialistas e terem as competências adequadas para os poderem tratar e cuidar. Mas estão longe de estarem integrados na sociedade.

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Os que têm a felicidade de viver em espaços comunitários dentro dos hospitais psiquiátricos e casas de saúde, relacionam-se entre si como se fossem uma grande família e estabelecem com os psiquiatras, enfermeiros, terapeutas e cuidadores laços muito fortes. Têm atividades sociais, fazem teatro, vêm cinema, organizam passatempos, visitas e saídas em grupo (quando era possível e a partir do momento em que voltarem a poder juntar-se e sair) e alguns chegam a ter uma razoável autonomia. Mas há muitos que não têm esta sorte e estes, mesmo parecendo muito alheios da realidade-real, sofrem o peso da exclusão.

Conheço várias instituições que acolhem estes doentes, onde eles são internados temporariamente ou moram durante longos anos, alguns durante toda a sua vida. Conheço realidades distintas em diferentes pontos do país, todas elas marcantes e algumas verdadeiramente admiráveis. Cheguei a visitar o Hospital Psiquiátrico do Lorvão, muito antes de ter sido encerrado, em 2012. Penso na Casa de Saúde da Idanha – Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, por conhecer muito bem o extraordinário trabalho que fazem com os doentes e suas famílias.

Penso também, de forma particular, no Telhal, onde já passei dias inteiros como voluntária. Em Dezembro passado a Casa de Saúde do Telhal recebeu o prémio internacional “Beyond Duty”, que distingue as instituições e profissionais de saúde que agem muito para além do dever. Premeia as boas práticas clínicas e humanas de todos aqueles que fazem a lendária ‘extra mile’ no acolhimentos e cuidado com os outros.

E é por conhecer esta realidade interpeladora, este universo onde podemos encontrar outros muito semelhantes a nós, pessoas em tudo parecidas connosco e com os nossos, que agora escrevo. A pandemia tem sido pretexto para mobilizar muitos milhares de voluntários de todas as idades e áreas de especialidade, mas entre todos os que deram passos para ajudar há um grupo que me comove especialmente. O dos jovens COmVIDas.

Partindo da sigla COVID, mas acima de tudo da certeza de que se refere a pessoas e às suas vidas, os voluntários COmVIDas oferecem-se para cuidar dos grupos de risco e das pessoas que mais precisam, seja em lares de idosos ou em instituições psiquiátricas. Arriscam, eles próprios, a sua saúde e, quem sabe, até a sua vida para estar ao serviço dos que mais precisam. Ninguém sabe ao certo quais as sequelas da infeção por COVID, mas estes jovens voluntários correm o risco de se infetar por acreditarem que podem acrescentar valor com a sua presença, a sua ação e o seu espírito de serviço.

Verdadeiros missionários, avançam em grupos ecléticos e distribuem-se pelos lares e instituições onde mais ninguém quer estar. Até agora já fizeram 48 missões e ajudaram 44 instituições. Cuidaram de cerca de 3.000 idosos e serviram centenas de doentes. Nas sucessivas missões que fizeram no Telhal, para onde foram precisamente no auge da pandemia, no pico de infeções que atingiu mais de 120 doentes, muitos enfermeiros, auxiliares e alguns médicos, estiveram algumas dezenas ao longo de várias semanas.

– Deram um testemunho brutal a todos, utentes e profissionais de saúde!

Margarida Neto, Psiquiatra e Diretora da Unidade de Alcoologia do Telhal, fala destes jovens voluntários com admiração e gratidão. Admite que não esperava tanto.

– Chegam prontos para todo o serviço. Trabalham em turnos de 6h sem interrupções. Não param para comer, nem para ir à casa de banho, para fumar ou conversar. Trabalham no duro. Todos nos perguntamos como é que eles aguentam.

Movidos pelo propósito de servir, ajudar, fazer a diferença, animar e resgatar, os voluntários foram um exemplo de entusiasmo e profissionalismo.

– Varriam, limpavam, cuidavam das casas de banho e ajudavam a limpar e a desinfetar as enfermarias, estavam sempre onde era preciso. Connosco, com os utentes, com todos. Davam as refeições aos doentes, faziam-lhes companhia, eram divertidos e ternos com eles. Sempre inspiradores e muito acolhedores. Um destes grupos de jovens ficou quase todo infetado.

Centenas de voluntários estiveram e estão no terreno e ao todo tiveram mais de 100h de formação, pois não basta a bondade, a abertura de espírito e a vontade de ajudar. Também é preciso saber estar nos lares e nas instituições sem atrapalhar, acrescentando valor, treinados para saberem como ser eficazes em cada contexto. Dizem de si próprios que querem ser “ponte entre quem quer ajudar e quem precisa de ajuda” para promover o maior conforto possível neste tempo tão exigente, tão erosivo e devastador para tantos.

Gavião, Guarda, Foz Côa, Lisboa, Évora, Faro, Vila Real, Alcabideche e Portalegre são pontos de paragem para os COmVIDas. E o Telhal. A Casa de Saúde do Telhal cuja marca é o verdadeiro acolhimento.

Num tempo de más notícias, muito desnorte e incerteza, o COmVIDas nasceu com um propósito extraordinário: ir onde quase ninguém quer ir, estar onde muitos outros não conseguem estar. Organizaram uma rede de ajuda às instituições de apoio aos idosos que neste tempo de pandemia atravessam maiores dificuldades. E fazem-lhes chegar uma rede de voluntários formados e capazes de ajudar de forma segura e responsável.

Por conhecer o impacto do trabalho e presença destes voluntários, mas também o seu entusiasmo contagiante, não resisto a fazer-lhes uma grande vénia. E, a pensar neles e em todos os que estão ao serviço, no seu posto, ou se dispõem a ajudar com gratuidade, concluo com uma célebre frase de Martin Luther King Jr:

“Life’s most urgent question is ‘what are you doing for others?’”