Os impactos das grandes transições em curso – climática, energética, digital, demográfica, migratória, laboral – e, agora, os efeitos devastadores da pandemia da Covid-19 são um grito de alarme acerca do papel decisivo das ciências e dos cientistas neste combate tão urgente. Para mim continua a ser uma enorme deceção, continuo sem perceber porque é que investimos tanto em tecnologia, sistemas automáticos e inteligência artificial e tão pouco em relações humanas, inteligência emocional, sociabilidade e humanidade? Num futuro próximo, cada vez mais híper-conectado, automatizado e virtualizado, onde ficam os direitos humanos e a arte das relações humanas, isto é, a humanidade?
A este propósito, a minha questão fundamental é relativamente fácil de enunciar: o capitalismo industrial 1.0 criou o proletariado e fez emergir as ciências humanas e sociais, hoje, perante o capitalismo digital 4.0 e o exército industrial dos networkers, pergunto, por onde andam as ciências humanas e sociais e a teoria crítica do capitalismo do século XXI? E, agora, com as consequências devastadoras da pandemia, a curadoria das ciências humanas e sociais é, mais do que nunca, necessária, mesmo imprescindível, logo, não há mais razões para os cientistas sociais se demitirem das suas responsabilidades científicas, académicas, sociais e políticas.
A realidade e o progresso, um jogo de luzes e sombras
Há umas décadas, ainda, o futuro estava inscrito na lógica do progresso, era, digamos, linear, previsível e programável e estava, portanto, ao nosso alcance. No último quarto de século, porém, o futuro deixou de estar inscrito na lógica das coisas, sem mecanismo de programação e quase sempre furtivo, instável e virtualmente líquido. Ou seja, num mundo cada vez mais digital e virtual, raramente a realidade se deixa apanhar. Quando olhamos o que é que vemos? Apetece dizer, quanto mais olhamos menos vemos, isto é, estamos em apuros. Afinal, o que é a realidade e o progresso inscritos nos mistérios do quotidiano, nos dias de hoje?
Em primeiro lugar, vivemos em sociedades de risco iminente e elevado, atravessadas por cortinas sucessivas que as tornam pouco transparentes. Os nossos olhos são apenas olhos, uma pele fina para as primeiras visualizações, apenas isso.
Em segundo lugar, vivemos permanentemente em ambientes simulados, somos, sobretudo, atores e personagens constantemente comprometidos numa vertigem representativa, utilizando inúmeras máscaras que usamos conforme as circunstâncias e as conveniências.
Em terceiro lugar, quando todos comunicarem entre si, pessoas, objetos e inteligência artificial, teremos atingido uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado.
Em quarto lugar, a velocidade é a nossa imagem de marca e o presente é, digamos, uma mera circunstância, um epifenómeno na grande seta do tempo e destinado a ser devorado por um simples ato de consumo.
Em quinto lugar, a realidade é um assunto interpretativo e o campo das ciências sociais e humanas, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, com origem no “iluminismo moderno e na cultura analógica”, está definitivamente posto em causa.
Em sexto lugar, na era dos dados, multidões e algoritmos, estamos obrigados a suspeitar para conhecer. Digamos que estamos a atualizar para o século XXI o princípio cartesiano da dúvida metódica ou sistemática.
Em sétimo lugar, à boleia do risco sistémico e interdependente cresce muito a contingência, o risco moral, o free raider e a eventualidade de sérios danos colaterais.
Em oitavo lugar, nas sociedades de risco global e sistémico eclodem as interações fortuitas e, por via delas, as descobertas acidentais.
Em nono lugar, em plena era tecnológica e digital crescem os interfaces cérebro-computacionais e a inteligência deixou de estar contida nos limites do habitáculo humano original.
Por último, lutamos com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção e, no dia seguinte, ainda debilitados, tudo recomeça de novo.
Dito isto, existem, também, algumas razões de fundo que se acumularam ao longo das últimas décadas e que, de certo modo, relegaram a as ciências humanas e sociais para um papel secundário. Eis algumas dessas razões:
- O efeito corporativo de escola e de grupo;
- O efeito endogâmico no recrutamento e nas relações internas de poder;
- O academicismo e a acomodação quebraram a irreverência que vinha de trás;
- A especialização das disciplinas reduziu a inter e a transdisciplinaridade;
- O carácter furtivo e movediço da realidade não nos deixa ver os novos padrões;
- A fragmentação social quebra os vínculos orgânicos da realidade;
- A proximidade com o poder consente, por vezes, a instrumentalização política;
- A cacofonia da desinformação nas redes sociais prejudica o juízo científico;
- A falta de cientistas socialmente reputados não ajuda a acreditação das ciências;
- A falta de uma nova filosofia científica que una as ciências humanas e sociais.
E, no entanto, este é o momento crucial para a reafirmação das ciências humanas e sociais. Os impactos das grandes transições já em curso e os efeitos devastadores da pandemia da Covid-19 não deixam margem para quaisquer acomodações ou arranjos de conveniência, sejam corporativos, endogâmicos ou pseudocientíficos. Vejamos alguns tópicos de uma agenda política para as ciências humanas e sociais.
Uma agenda política para as ciências humanas e sociais
Acreditamos na ciência médica e bioquímica e na inteligência artificial para orientarem as nossas tomadas de decisão, como é, agora, o caso da pandemia da Covid-19, mas não depositamos a mesma confiança nas ciências humanas e sociais para nos orientarem na arte das emoções e das relações humanas e sociais face às grandes transições do século XXI. Porque não cuidamos, em prioridade, das famílias e dos nossos concidadãos mais vulneráveis, os mais pobres, mais doentes e mais isolados, vivendo nas aldeias, vilas e cidades mais abandonadas e deprimidas do interior do país, mas também nos guetos urbanos e suburbanos do litoral?
Perante uma nova geração de desigualdades sociais, a vida tornou-se uma “categoria líquida”, uma metáfora para o estado da nossa condição humana: tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, líquido. A passagem do conceito de ordem ou estrutura (sólido) para o conceito de rede ou conexão (líquida) dá bem conta dessa transição. E estas noções líquidas e fluidas são de aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e, obviamente, da revolução digital. E, assim, não fica nada fácil para as ciências humanas e sociais, confrontadas com as profundas metamorfoses e clivagens do capitalismo tecnológico e digital do século XXI.
Por que investimos tanto em tecnologia e tão pouco em humanidade e por que razão as ciências humanas e sociais ficam para trás e não cumprem o seu papel nuclear de “curadores da humanidade” quando as comparamos com as ciências e tecnologias ditas mais duras?
Os dados estão lançados. O avanço tecnológico é imparável e acabará por conduzir à nossa desqualificação, ao nosso desprendimento emocional e à corrosão do carácter como nunca tínhamos experimentado antes. Dos smartphones aos assistentes inteligentes será um passo, dos interfaces cérebro-computacionais aos homens aumentados serão apenas dois passos. E sobre as consequências de tudo isto, sobre os impactos das tecnologias digitais e das pandemias, o que têm as ciências humanas e sociais para nos aconselhar e serenar? Eis alguns tópicos de reflexão para uma agenda política das ciências humanas e sociais no século XXI.
1. Uma revolução no mundo do trabalho
O rendimento dissocia-se do trabalho (salário), a pluriatividade e o plurirrendimento serão, cada vez mais, a norma. A tipologia das profissões será bastante alterada. O direito laboral e os direitos sociais associados ao mercado do trabalho sofrerão uma profunda revolução, assim como o papel das organizações sindicais e os movimentos sociais.
2. Uma revolução no universo familiar
O novo normal em matéria familiar será muito diversificado e contingente, as famílias como as profissões atravessarão uma fase tumultuosa até poderem estabilizar novamente. Assistiremos a fortes perturbações no ciclo de vida familiar. Dadas as evidentes vulnerabilidades de todos os intervenientes, as formas de proteção social exteriores à família terão de ser objeto de cuidado estudo e avaliação.
3. Uma revolução no universo da sociedade sénior
A maior longevidade e o envelhecimento ativo dos mais idosos abrirão a porta a muitas soluções novas de interação social com outros estratos e grupos da sociedade, seja no mundo do trabalho como no universo familiar, por exemplo em projetos sociocomunitários e de voluntariado.
4. A revolução do “quarto setor”
Um “quarto setor” onde a comunhão, a solidariedade, o sentido comunitário, o voluntariado e as inúmeras plataformas colaborativas correspondentes serão os fatores decisivos no planeamento e organização da intervenção social integrada, no mercado dos bens comuns colaborativos e nos serviços ambulatórios ao domicílio.
5. Uma revolução no Estado providência
Deveremos refletir em profundidade sobre o futuro do Estado providência e a recomposição das suas diversas prestações sociais associada ao quarto setor, mas não só, enquadrado na sua filosofia social, e um dos seus instrumentos principais, estará o “rendimento básico garantido” cuja tipologia de administração precisa de ser estudada.
6. Uma revolução no direito regulatório face à transformação digital
A uberização intensiva é apenas um exemplo do que pode a nova economia digital face a trabalhadores desprotegidos. Mas, também, a eventual comercialização dos nossos dados pessoais que cada um de nós pode administrar conforme as suas próprias conveniências. Podemos ainda acrescentar a manipulação genética e a edição do genoma humano. Sem a barreira dos valores e dos princípios como reguladores essenciais podemos começar a resvalar profundamente nesta matéria.
7. Uma revolução no contencioso de responsabilidade no espaço público
Sem uma nova ética humana que atualize os nossos valores e princípios, a dosagem recomendada entre liberdade e segurança fica sem medida e regulação apropriadas. A violação de direitos e garantias e a ausência de um contencioso de responsabilidade adequado deixam-nos à mercê do acaso e da necessidade. A sociedade algorítmica do próximo futuro, em nome da nossa pretensa segurança, pode ser, também, uma sociedade sem piedade ou compaixão.
8. Uma revolução nas artes da educação, conhecimento e cultura
Esta será a cadeia de valor mais preciosa na era digital, mas, desta vez, menos verticalizada e hierárquica e mais colaborativa e transversal. A escola deve inscrever-se na comunidade educativa, científica e cultural e é sobre esta, a sua estruturação, que deverá incidir a atenção das ciências humanas e sociais, de acordo com um conceito muito compreensivo de curadoria comunitária.
9. Uma revolução nos costumes e na norma de sociabilidade
Na presença de máquinas inteligentes e de uma sociedade algorítmica altamente padronizada, está em causa o nosso comportamento e o padrão de vida coletiva. Está na altura de as ciências humanas e sociais se preocuparem com um novo normativismo social que nos proteja de sermos um homem-aumentado contra a nossa vontade, quando apenas queríamos ser um homem-normal, feio e imperfeito.
10. Uma revolução nos direitos humanos fundamentais
As grandes transições deste século – climática, energética, digital, demográfica e socio-laboral – mas, também, o transumanismo e o pós-humanismo, exigirão, muito provavelmente, uma revisão dos direitos humanos fundamentais, seja na sua doutrina e tipologia, funcionalidade e operação, aplicação e regulação. Além disso, é preciso acautelar que os populismos nacionalistas ponham em causa o multilateralismo liberal que permitiu a sua institucionalização cosmopolita no século XX.
No plano da epistemologia e da hermenêutica das ciências humanas e sociais, o cientista social parece impotente perante mais um “Momento Polany” em consequência da convergência das grandes transições já referidas. É, ao mesmo tempo, uma viagem excitante que nos leva da sociedade fronteiriça e disciplinar da ciência moderna até à sociedade global e colaborativa das plataformas científicas e tecnológicas, e uma viagem inquietante cheia de riscos e muita esperança que vale a pena empreender.
Notas Finais
O imaginário social da transformação tecnológica e digital é um excelente campo de observação no que diz respeito ao “tempo do futuro”. A cada tecnologia estão, quase sempre, associados uma promessa, uma curiosidade e um mistério, isto é, um imaginário social que está configurado como se fosse uma linguagem que precisa de ser descodificada. Logo, com muita ambivalência e duplicidade à mistura.
Em redor das grandes transições e da pandemia e, bem assim, do imaginário social que as envolve, configuram-se discursos muito variados e as representações dos protagonistas mais diversos, sejam os cientistas, o governo e as administrações, os grandes operadores empresariais, os meios de comunicação social, mas, também, os destinatários e beneficiários finais. Ou seja, as várias camadas da realidade e as suas impurezas e imperfeições.
O cientista social está com manifestas dificuldades em lidar com a cultura digital e, mais especificamente, com este outro “agir comunicacional” onde a inteligência coletiva que emana das novas plataformas colaborativas desempenha um papel fundamental. Em especial, a interação entre comunidades online e comunidades offline é uma fonte inesgotável de ensinamentos, não apenas no lado cognitivo destas comunidades, como, também, no lado preventivo e terapêutico destas comunidades, pois não podemos esquecer o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam.
Dito isto, e perante uma agenda tão sobrecarregada, onde a reconfiguração do espaço público e a saúde pública, em sentido amplo, ocupam um lugar central, tenho muitas dúvidas de que as ciências humanas e sociais, sem um esforço sério de investigação-ação em todas as áreas anteriormente mencionadas, cumpram bem o seu papel de “cuidadores da humanidade”. A academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora desta nova antropologia cultural, tecnológica e digital.