Às vezes, vem a tentação de pesar os tempos, de tentar perceber quais as suas crenças mais notórias. É uma maneira de procurar dar forma ao informe, ao sentimento vago que o mundo à volta nos provoca. Vale o que vale. E a possibilidade da parcialidade é o menos. O risco, é claro, é acabarmos por onde começamos, isto é, pelo tal sentimento, sem adiantar nada. Mas, por razões higiénicas, vale a pena. Com sorte, alivia.
Comecemos pelo sentimento de irrealidade. É difícil escapar-lhe. À superfície mediática, parece que tudo se passa numa espécie de vazio quadriculado em que cada espaçozinho deve ser preenchido por um medo novo e por uma proibição nova, em benefício do progresso da espécie. Há medos e proibições para todos os gostos e temperamentos. O passado deixou de existir, a não ser como imagem negativa do que deve ser e das conquistas do futuro. Não é preciso ser conservador para sentir isto. Basta estar consciente de que não nascemos ontem e ter alguma memória. Ver as pessoas pensarem e agirem como se assim fosse cria a sensação de se viver num mundo irreal, sem materialidade alguma. As palavras do passado e as memórias do passado são uma a uma apagadas. É isto sinal de alguma particular vitalidade do presente, da energia da vida que quer modificação? De modo nenhum. A vida precisa da memória, vive dela, particularmente da memória de como se sentia noutros tempos. De outro modo não pode ser examinada e não merece, como dizia um filósofo, ser vivida.
Em tempos passados, asseguram-nos, havia polímatas, gente cuja especialidade, como a de Mycroft, o irmão de Sherlock Holmes, era a omnisciência. Hoje, a figura dominante seria antes a do idiota polivalente, ou idiota multiusos. Além de costumar achar-se graça a si mesmo, na exacta proporção em que lha falta, tem ideias sobre tudo. A religião, por exemplo, reduz-se a uma inexplicável tara do passado que é não só possível como urgente extirpar. Ao mesmo tempo, ama a ciência com um amor filial. Só que, tal como não percebe, completamente destituído de imaginação como é, a religião, também tudo ignora sobre a ciência. Não apenas nos seus detalhes, o que é pouco importante, mas no seu enraizamento histórico, na sua dimensão e projecto. A bem dizer, a ciência não lhe interessa para nada. É um símbolo, apenas um símbolo, do que crê ser a desejável ruptura total com o passado. É um supersticioso da ciência, ou melhor dizendo, de um ídolo dotado de poderes mágicos ao qual nada corresponde na realidade.
O que vale para a religião e a ciência vale igualmente, como não poderia deixar de valer, para a sociedade. A sociedade, para o idiota polivalente, é uma superfície lisa onde todas as diferenças não apenas são artificiais (como, em certa medida, de facto o são), mas igualmente elimináveis da primeira à última. Dito por outras palavras, é possível aos seus olhos as sociedades viverem numa espécie de assimbolia generalizada. Mais do que possível é desejável. E, mais que desejável, tal é o resultado necessário do progresso em direcção ao Bem. Ora, é certamente verdade que uma sociedade que viva em perpétuo estado de hiper-simbolia, onde todas as diferenças sejam vistas como naturais e absolutas, é algo próximo do horror, um horror que desgraçadamente foi mais a regra do que a excepção na história da humanidade. Mas não é menos verdade que nenhuma sociedade pode viver em permanente estado de assimbolia e de indiferenciação, já que o resultado imediato de tal estado, de um estado em que todas as diferenças no interior da sociedade se esbatem, é a incalculável multiplicação da violência no seu seio. Esta simples constatação é incompreensível ao idiota polivalente.
Tomemos o exemplo das recentes eleições na Suécia (mas muitos outros exemplos, é claro, se poderiam dar). Não há notícia que não mencione o perigo terrível da votação dos “Democratas suecos”, símbolo da extrema-direita. Para o que estou a querer dizer não me interessa o facto de aparentemente o partido ter evoluído, desde os anos oitenta do século passado, em que era francamente racista e nacionalista, para posições muito mais moderadas, evolução que implicou a expulsão de muitos dos seus membros. O que interessa é outra coisa: as razões pelas quais a sua votação aumentou de forma tão estrondosa.
São razões fáceis de perceber, mesmo à distância. Quando o ex-primeiro-ministro Fredrik Reinfeldt, do Partido Moderado, declara em 2015, no contexto do debate sobre as migrações, que os suecos são em si mesmos “desinteressantes” e que as fronteiras são construções “ficcionais”; quando a ministra da Integração, Mona Sahlin, anuncia em 2004 que os suecos invejam os curdos por estes possuírem uma história e uma cultura ricas e unificadoras enquanto os suecos se limitam a apreciar irrelevâncias; quando a secretária parlamentar Lise Bergh responde em 2005, confrontada com a questão de saber se é necessário preservar a cultura sueca: “O que é a cultura sueca? E com isto suponho que respondo à sua pergunta”; quando se vive assim fundo na assimbolia – bom, do que é que se está à espera?
Pesam-se os tempos, ou uma parte das suas faces mais visíveis, e é isto que se encontra. Um mundo assim povoado por idiotas polivalentes, em formidável mergulho na irrealidade, só pode ir por muito mau caminho.