Nas décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra o Ocidente viveu uma ilusão. Entre antibióticos, vacinas e a melhoria das condições sanitárias e de alimentação, doenças que tinham assombrado gerações incontáveis desvaneceram-se: a tuberculose, a septicémia, a varíola, a cólera, a poliomielite. Umas tornaram-se inofensivas, outras foram varridas do mapa. A tuberculose foi declarada “residual”.
Até que, nos anos 1980, apareceu a SIDA. As pessoas não iam ao barbeiro, tinham medo de beber água nos cafés (por causa do copo) e, nos hospitais, havia quem se recusasse a tocar nos processos (de papel) dos doentes. Isto durou até meados da década de 1990. Recordo-me que o caminho que ladeava a varanda da Infecciologia no hospital onde eu então trabalhava era percorrido em passo rápido e sem olhar. Suponho que era assim que, noutros tempos, se cruzavam os caminhos das gafarias e dos sanatórios. A SIDA confrontou-nos com a nossa mortalidade, que a geração anterior se dera ao luxo de esquecer, e, à medida que figuras públicas e amigos próximos tombavam, as pessoas aderiam aos cuidados de prevenção e alteravam comportamentos sexuais, na maior revolução de costumes desde o aparecimento da pílula.
Depois o aparecimento dos anti-retrovirais transformou a SIDA numa doença crónica. Não voltei a assistir doentes a morrerem em asfixia, com os pulmões cheios de Pneumocistis. Era possível sobreviver e viver outra vez, trabalhar, ter filhos. E a sensação de impunidade voltou. No seio das comunidades gay dos países ocidentais, que tinham sido fulcrais na contenção da SIDA, surgiram abstrusos rituais de “iniciação”, em que pessoas não infectadas eram deliberadamente expostas ao vírus. O CDC reporta há vários anos um aumento da incidência de infecção pelo VIH devido a esta prática, que tem um nome, “barebacking”. Entre as razões indicadas pelos próprios conta-se que o sentimento de “pertença” a um grupo tão especial vale bem uma infecção que já não passa de um “incómodo” tratável com “meia dúzia de comprimidos”.
Que é que têm em comum estas pessoas e os activistas anti-vacinas? Três coisas: riqueza, ignorância e arrogância.
Os candidatos a infectados pelo VIH esquecem os terríveis efeitos secundários das terapêuticas: dislipidémia, diabetes, risco cardiovascular aumentado, malabsorção e todas as carências a ela associadas. Além de boicotarem deliberadamente as políticas públicas de contenção da infecção e de partirem do óbvio pressuposto de que podem contar com sistemas de saúde eficientes e sempre presentes.
Os movimentos anti-vacinação são populares sobretudo entre a classe média das sociedades ocidentais, que leu umas coisas no Google e nas revistas de supermercado e adora culturas “alternativas” e “meditação”. É gente que nunca passou fome nem viu pessoas morrerem por falta de hospitais, antibióticos – e vacinas.
O argumentário usado impressiona pela ignorância. É de quem não faz ideia de como funcionam as estratégias de vacinação nem os mecanismos de resistência. Além disso, regra geral não querem vacinas mas não prescindem dos cinemas, dos autocarros e das escolas. Quando o governo australiano, há poucos meses, decidiu penalizar quem recusasse o plano de vacinações, houve logo pais a queixarem-se por serem “obrigados a fazer uma escolha coerciva.” Aparentemente, não lhes ocorre que não podem beneficiar da rede social em que vivem e, ao mesmo tempo, fugir aos impostos, às leis e a mínimos de higiene pública.
O tema do decaimento da civilização pela perda de competências (e pela inconsciência dessa perda) foi recorrente na ficção científica americana dos anos 1950 e 60. Uma mistura explosiva de ignorância e individualismo hedonista ameaça tornar reais os devaneios apocalípticos desse sub-género literário.
(*) “O imortal” é o título de um conto de Jorge Luis Borges, que começa assim: “Ser imortal é coisa sem importância. Excepto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal.”
Médico patologista