Há muitos argumentos a serem esgrimidos a favor e contra a despenalização da eutanásia e todos são sinceros e, de alguma forma, respeitáveis. Em princípio, a minha formação libertária devia impelir-me para o lado que defende a despenalização. Decidir viver ou morrer pertence a uma irredutível intimidade que me repugna que seja invadida pelo Estado. Mas, contra esse primeiro impulso, levantam-se outros argumentos.

Desde logo, a famosa “rampa deslizante”. Os números dos primeiros países que despenalizaram estão aí para quem os queira ver. Só na Holanda, as mortes devidas a eutanásia são mais de quinze por dia. Começaram como nós vamos começar, pelos que são óbvios: doentes terminais, situações insustentáveis. Depois incluíram os velhos que se sentem inúteis. Crianças. Doentes mentais. Gente que está deprimida ou apenas cansada de viver. Gente que disse que queria e depois já não quer e por isso é considerada “incapaz” de decisão. E agora, vem aí o comprimido letal gratuito para quem completar os setenta anos. Os promotores falam em “tranquilidade”. Mas a mensagem que passa é outra: “vão-se embora, desapareçam”. Isto tudo em menos de vinte anos. Que virá a seguir? Oferecer o comprimido aos sem abrigo, talvez? Afinal, um sem abrigo é basicamente um tetraplégico social. E há, claro, os doentes crónicos, que custam fortunas à comunidade em cuidados médicos e perdas de produtividade. Acham que exagero? Mas não é tudo verdade? Não é toda essa gente um peso social?

Uma sociedade que não defende as suas linhas vermelhas condena-se à irrelevância. As nossas linhas vermelhas são a liberdade e a dignidade de cada ser humano, que são independentes de raça, crença ou fortuna. Foi assim que se definiram a partir da nossa herança grega, cristã e iluminista. Mas os valores são indivisíveis. Não há liberdade parcial, como não há dignidade parcial, ainda que todas as tiranias nos tentem convencer do contrário. A dignidade da vida humana é intrínseca e irrevogável ou não é nada. Do ponto de vista da lei e do Estado, não é aceitável que certas vidas sejam consideradas dignas de serem vividas e outras não. Seja qual for o critério. É com base neste princípio simples que a nossa sociedade condena a escravatura e a pena de morte e defende o cuidado com os doentes e o auxílio aos desfavorecidos. Os que defendem a eutanásia dão-no por adquirido. Estão enganados. Os valores nunca estão adquiridos. Existem porque os revalidamos constantemente pelas nossas atitudes, agindo de acordo com eles. Sem isso, desaparecem, porque os valores humanos são uma construção frágil da civilização, que se esvai na primeira guerra, na primeira fome, na primeira histeria. É por isso que aceitar a eutanásia para quem sofre é um erro grave.

Sobra o cansaço da vida, que é um argumento que vai fazendo o seu caminho para reclamar o direito à eutanásia. Na tradição religiosa, esse cansaço ou indiferença pela vida chama-se acédia e é muito justamente considerado um dos sete pecados mortais. A essas pessoas, confesso, não tenho nada para dizer. Não sei porque há-de o Estado dar-lhes a benção ou sequer porque hão-de fazer questão de a ter. Que sigam o seu caminho. Vamos pensar nos vivos.

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