2019 foi politicamente marcado pelas questões da Saúde e a profissão médica voltou a estar na ribalta da controvérsia. Primeiro, pela apregoada deserção do serviço público e atração pelo sector privado, percebida como traição; em segundo lugar, pelo conhecido argumento do corporativismo, para explicar carências em algumas especialidades e complacência perante erros repetidos e cujo conhecimento marcou o tempo mediático.

Toda a situação na Saúde me parece grave e a necessitar de visão e semântica inovadoras que ultrapassem as armadilhas que têm condicionado o debate público. O Governo e a Oposição não escaparam a velhos hábitos, confundiram o acessório com o essencial e optaram pelo caminho mais fácil, prisioneiros da linguagem e dos slogans. Ou se é a favor ou se é contra o SNS actual, dicotomia simplista que me parece mais dedicada a suscitar apelo identitário, de fidelidade à tribo e à ideologia, em vez de análise ponderada dos problemas e das soluções necessárias.

Na continuidade de uma acção de cariz pouco reformista, pontuada pela adopção do horário de 35h para as profissões da Saúde, surge, agora, uma sugestão para resolver a carência de especialistas no SNS.

A proposta é a imposição aos jovens especialistas de obrigatoriedade de anos de trabalho no sector público após conclusão da formação ou o pagamento de compensação financeira se optarem pela saída do SNS. Um muro na cidadela, uma proibição cerceando a liberdade individual dos médicos. A linguagem é clarificadora: retenção versus fixação voluntária e activa apelando à motivação e mobilização de vontades e competências e à renovação das condições de trabalho e carreira. Isso sim, é que seria verdadeiramente alicerce sólido para um verdadeiro compromisso de acção com o SNS e não o resultado duma imposição unilateral.

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A lógica da proposta pretende ser linear, mas é equívoca. O curso médico é caro e maioritariamente pago pelo Estado, a formação pós-graduada, também designada por Internato e que é um direito do médico recém-formado, é esmagadoramente realizada no SNS, com reduzida expressão no sector privado e o médico-interno é assalariado. Logo, somando as parcelas, cada especialista formado tem um custo financeiro – a soma do curso e internato – e por isso o Estado deve ser indemnizado se o médico optar por sair do sector público. E reforçando a argumentação invocam-se as Forças Armadas exigem compensação financeira aos especialistas, que formaram, se interromperem a sua prestação de serviço na organização militar.

Algumas realidades foram esquecidas. A primeira, é que há uma parcela do custo do curso médico que é suportada pelo próprio ou pela família, enquanto nas Forças Armadas não há copagamentos; a segunda, o interno não está só aprender, presta um serviço muito importante aos doentes e à instituição, pelo que é legítimo que receba um salário, o qual é muito inferior ao que seria pago a um qualquer tarefeiro que desempenhasse o seu serviço. A terceira, é talvez a mais relevante: na nossa arquitectura social o Estado assume a responsabilidade da promoção da Educação Superior para formar cidadãos educados e com profissão qualificada para o serviço da Comunidade e não exclusivamente para a função pública. E essa missão é maioritariamente paga pela riqueza nacional através dos impostos.

Por último, a Medicina não é uma actividade exclusiva do Estado, está legalmente reconhecida a legitimidade do sector privado. As Forças Armadas, pelo contrário, têm exclusividade da sua missão atribuída pela Constituição da República, a defesa e segurança da Pátria. A sua política de recursos humanos tem, por essa razão, limitações e exigências que não são sobreponíveis às da Medicina, sem ensino privado excepto para os estudantes que emigraram e pagaram para tirar o seu curso por essa Europa.

Além do mais, quando as Forças Armadas incorporam indivíduos para formação no exterior, como médicos, enfermeiros e engenheiros etc, estabelecem um contrato inicial onde são discriminados direitos, deveres e indemnização em caso de interrupção unilateral do contratualizado.

Ora nada disto existe na carreira do Internato Médico. Soube-se, depois, que a medida se aplicaria aos novos internos a admitir em 2020, portanto com efeitos práticos só em 2025 -26! A ser concretizada, não teria qualquer efeito nos próximos 2 a 3 anos, período de maior carência potencial de médicos no serviço público.

A questão é bem mais complexa e justifica análise mais profunda. Nesta equação para a formação de médicos-especialistas há dois componentes fundamentais: quem aprende e quem ensina e não apenas a disponibilidade e custos eventuais da instituição formadora.

Em primeiro lugar, reafirmo uma posição que sempre defendi: a formação pós-graduada ou Internato Médico deveria ser feita em exclusividade, com horário de acordo com a directiva europeia para a formação médica que propõe 48h semanais, o qual foi aceite pelo European Junior Doctors (EJD/PWG), e não as 35h ou 40h em vigor actualmente. Por duas razões: a disponibilidade total é fundamental, centra o interno na sua função, permite expandi-la e desenvolver actividade científica complementar – muitos começam e até terminam teses de PhD durante o Internato, como se verifica em vários países da União Europeia, contribuindo para o desenvolvimento académico da Medicina Clínica. A segunda, porque se potenciaria o melhor aproveitamento de todas as oportunidades de aprendizagem. Obviamente, há regras, mecanismos de salvaguarda para respeito dos horários de trabalho, para defesa da qualidade de vida dos Internos e para a prevenção de abusos.

Depois os Tutores, isto é, quem ensine e transmita experiência, porque a aprendizagem médica, não é exclusivamente livresca, pressupõe transmissão directa do conhecimento perante as situações clínicas factuais, como do mestre para o aprendiz, numa trajectória progressiva até à autonomia completa. Não existe nenhum reconhecimento pela responsabilidade dessa tarefa, a qual tem sido assumida como um imperativo ético da Profissão e sem que o Ministério da Saúde cuidasse em propor qualquer medida de incentivo ou reconhecimento pelo desempenho dessa missão. E, curiosamente, parece ser neste grupo – dos potenciais tutores, especialistas já com experiência e maturidade – que se terá verificado maior taxa de abandono do SNS, particularmente nos últimos anos.

Nenhum governo, da direita à esquerda, quis mudar a organização, considerando a exclusividade no Internato e o reconhecimento da missão educacional dos tutores. Seria mais caro? Talvez, mas esse custo seria exponencialmente compensado pelo retorno em trabalho, aprendizagem, experiência e produção científica.

Agora os médicos, amanhã quem serão os outros? Os enfermeiros, os técnicos de diagnóstico, os engenheiros, gestores e todos os que fizerem a sua Educação Profissional nas Instituições Publicas? Serão devedores do Estado e com obrigatoriedade de serviço público durante um certo número de anos?

Esta proposta governamental para a retenção dos Especialistas no SNS traduz um equívoco e uma prepotência, consubstancia uma visão totalitária da missão e do poder do Estado e é um atropelo a direitos fundamentais como a liberdade de trabalho.

Nada de mais substantivo nos é proposto em relação a uma nova política de recursos humanos e de reformas indispensáveis ao actual SNS, que possam motivar e atrair os melhores para o serviço público. E isso é que é a questão fundamental.

Mas, tão ou mais preocupante que a proposta do governo tem sido o silêncio da Oposição.

Esta questão é apenas a ponta do iceberg das dificuldades na coexistência dos sectores público e privado no nosso Sistema de Saúde. A sua resolução não se coaduna com medidas avulso, desligadas duma visão nova e global e de uma estratégia de acção continuada e coerente, nem com a destruição de nenhum destes sectores.

PS: À data da conclusão deste artigo, tinha ocorrido só um episódio de violência sobre médicos no exercício da sua actividade. O que parecia ser um acto isolado, que deveria imediatamente ter sido criticado pela Ministra da Saúde, expressando a solidariedade com a profissão médica, repetiu-se com violência acrescida nos dias subsequentes, perante o silêncio e a falta de uma atitude simbólica junto da Ordem dos Médicos.

Recordo há décadas, num período de dissolução da autoridade, vários actos de violência sobre os profissionais de Saúde, particularmente nos serviços de Urgência. Foi um período difícil, para o qual a firmeza das autoridades e o apoio inequívoco do Poder Político aos profissionais de Saúde foi decisiva.

Teria esperado que a Ministra da Saúde, como responsável superior da Política de Saúde e da eficácia global dos serviços públicos de Saúde, tivesse chamado o Bastonário da Ordem dos Médicos para lhe expressar, publicamente, a solidariedade e apoio do Estado a uma classe profissional que tanto tem contribuído para o funcionamento do sistema público de Saúde.

Não sei se o fez quando os alvos foram enfermeiros e, se também houve omissão, foi pena. É importante que o Poder Político não assinale, pelo silêncio e pela omissão de actos simbólicos de elementar cortesia e solidariedade no essencial, que as classes profissionais da Saúde podem ser tidas como responsáveis pelos falhanços eventuais das suas Políticas.

A violência sobre os profissionais de Saúde é, infelizmente, uma realidade que não pode ser ignorada e que deve ser activamente prevenida. É como nos Professores e noutros grupos cuja profissão é o serviço da Comunidade: é uma ofensa cívica inaceitável numa sociedade democrática.