“Estratégia sem táctica pode ser um bom sonho, táctica sem estratégia é um pesadelo” (Michael Clarke)

Estratégia em Política (P maiúsculo) é método e arte para a realização dum projecto, dum desígnio, duma finalidade, cujos objectivos sejam o Bem Público. Os seus pressupostos são conhecidos, da Grécia antiga à China milenar, com as adaptações de cada tempo histórico. Táctica será o modo de usar os meios disponíveis, a arte de mobilizar vontades, recursos e disponibilidades. São indissociáveis. Pressupõem conhecimento dos problemas, percepção das dificuldades, fidelidade aos objectivos essenciais, planeamento da acção, capacidade de intervenção, autoridade sobre os executantes, coragem e determinação. A perplexidade e incerteza actuais na Saúde não são doença aguda no SNS; são produto de indecisões, mudanças de orientação política, desrespeito de valores e perda do foco no essencial. O desencontro entre ministério da saúde e médicos era inevitável, pela ausência de uma estratégia coerente, lúcida e continuada, e uso de táctica casuística, mas inábil. A Urgência, novamente como foco, ponta do iceberg da crise da Saúde, pela sua dimensão mediática, pelo alarme e preocupação das populações e pela ausência de coragem política para as mudanças necessárias.

Vejamos os factos, há muito conhecidos. Primeiro: 50 a 60% da procura de urgência hospitalar em Portugal é falsa urgência, o que não é igual a falsas necessidades médicas das pessoas. As causas foram exaustivamente enumeradas: cultura pública que assimilou Urgência a porto de abrigo, ausência reiterada de resposta clínica, ambulatória e de proximidade nos Cuidados Primários de Saúde, com dificuldades conhecidas no acesso. Conduziram à realidade bem conhecida: pletora dos serviços de urgência hospitalar, esgotamento dos quadros médicos hospitalares assoberbados pelo peso da dita urgência e recurso a tarefeiros, contratados exclusivamente para a urgência. Uma táctica errada, um ardil estratégico: porque o valor objectivo das remunerações baixou significativamente e o espartilho da função pública impedia a revalorização salarial, usou-se esquema complexo de compensação baseado nas horas extraordinárias, claramente desfavorável aos médicos das instituições, em comparação com os colegas contratados à tarefa. Muitos avisaram sobre o impacto de tais medidas: da desorganização do espírito de equipa e do exercício da responsabilidade, à desmoralização e desmotivação dos profissionais, à criação dum mercado de profissionais em paralelo e sem ligação hierárquica às instituições hospitalares. A Pandemia, com as suas consequências, a desorganização da resposta clínica, porventura inevitável, agravou o problema que já existia e tinha sido objecto de múltiplos avisos à navegação. Não explica a situação actual.

A estratégia a seguir deveria ter sido outra: reforço objectivo da área de intervenção ambulatória, centrada num upgrade da capacidade institucional dos Centros de Saúde e centralizada nos ACES. A proposta oficial parece privilegiar reorganização dos serviços de urgência nos maiores hospitais do país, porventura necessária, mas é sinal errado para as populações que continuarão a ver na Urgência hospitalar – agora reestruturada! – o porto de abrigo no oceano agitado da incapacidade de resposta da Medicina Ambulatória, a qual não aparece como prioridade na acção política. Táctica sem estratégia: pesadelo inevitável.

Há uma diferença abissal entre a urgência indiferenciada a que os ingleses chamam Casualty, e a verdadeira emergência médica, essa sim, que deverá estar centrada em instituições com capacidade, diferenciação e prontidão de resposta, incluindo os grandes traumatismos, a funcionarem 24h/7 dias da semana, respondendo às necessidades, electivas e urgentes. Temos exemplos de sucesso: desde as Vias Verdes para o enfarte do miocárdio e AVC, a actuação global do INEM, à acção eficaz e diária de todos, médicos, enfermeiros, técnicos e assistentes operacionais e que, muito bem, não despertam interesse mediático. São cumprimento do Dever, com competência, eficácia e recato. Tenho sérias dúvidas que equipas exclusivas para a Urgência devam ser a coluna vertebral – backbone! – da reorganização dos serviços de urgência hospitalar. A Urgência em Medicina é componente da Medicina Clínica em qualquer área de actuação. Diferente da especialização em Medicina Intensiva, uma competência específica de várias especialidades e indispensável numa instituição diferenciada no seu todo e não exclusiva para a Urgência. Receio mais um ardil estratégico que conduzirá inevitavelmente a mais um nicho profissional, com as suas regras exclusivas de grupo na boa tradição corporativa! Como foi o recurso aos médicos tarefeiros, que se organizou, criou mercado, tornou-se indispensável e condicionou a Política. Sem uma estratégia global a pletora da Urgência continuará a dominar o espaço público e nada mudará, sejam quais forem as tácticas, e não haverá urgência, mesmo reorganizada, que resista!

Vivemos uma época difícil, um outro Tempo e talvez uma realidade social diferente. Mas o combate é o mesmo, pelo Bem Comum, pelos valores do respeito e desenvolvimento das carreiras, potenciador da fidelização dos profissionais às instituições – diversidade de horários, mais um ardil estratégico – por uma organização hospitalar estruturada e hierarquizada na sua diferenciação e pela reorganização da Medicina Ambulatória dotando-a de efectiva capacidade de intervenção médica. E, também, pela cooperação inteligente e rigorosa com os sectores privado e social, pois o tempo dum SNS ensimesmado no seu casulo é Passado.

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