José Jorge Letria, atual presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, acaba de lançar um livro belíssimo mas, ao mesmo tempo, inquietante.

O título da obra, “Os Muros que nos Dividem”, corresponde a vários exemplos de muros construídos pelo homem, desde a antiguidade até aos nossos dias, começando na muralha da China, passando pela muralha de Adriano ou pelo muro de Berlim, até ao recente muro entre Israel e a Cisjordânia ou, mais recentemente ainda, ao muro entre a Hungria e a Sérvia, em plena União Europeia.

Para acompanhar cada um desses muros, criando o efeito da inquietude e sobressalto dentro de cada um de nós, o autor escolhe um poema ou frase que fale de liberdade São poemas ou frase de autores tão diversos como Robert Musil ou Florbela Espanca. A cada uma dessas citações, José Jorge Letria, acrescenta a sua rica e multifacetada prosa.

Ora é a propósito desses “muros”, dessa relação que o homem sempre teve com as fronteiras, com as suas marcas, bem como com o outro, mais próximo ou mais distante, separado por diferentes obstáculos e barreiras que dedicarei esta reflexão. Designá-la-ei, precisamente, de “os muros do mundo”, por influência da obra acabada de referir.

O homem sempre viveu rodeado de barreiras sempre construiu os seus limes (limites) físicos, sociais, culturais ou religiosos. O homem sempre se fortificou para sobreviver, para se defender da própria natureza, ou dos outros animais, mas também, e sobretudo, dos seus semelhantes.

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O que é a casa, o lar, a habitação, senão um abrigo, um espaço dividido, protegido, o “murado”, para proteção de si e dos seus. Uma espécie de caverna primordial ou ventre artificial, a que se veio a somar a proteção divina.

Essa casa, essa guarda, esse castelo ou fortaleza, ao mesmo tempo que protegia, também limitava a relação com os outos, a expansão, a inovação e o crescimento para lá do território já alcançado. Temo que seja esse o ponto a que estamos a voltar a propósito dos atuais debates sobre refugiados e imigração em todo o mundo ocidental.

Mas se sempre existiram muros, fronteiras, limes, o que nos inquieta hoje em dia é a força e a forma como se volta a falar delas e deles, bem como a construi-los, pois o regresso das fronteiras, o regresso dos muros, significa quase sempre o regresso do medo e da falta de liberdade. Sobretudo significa o não reconhecimento da igualdade dos homens. Não uma qualquer igualdade de resultados, niveladora, mas uma igualdade na dignidade da condição humana.

Com efeito, quando falamos nas conquistas dos direitos do homem, presentes nos nossos regimes constitucionais, quando depositamos a nossa fé na dignidade humana, não podemos esquecer o fundamento, a raiz da liberdade, que assenta na igualdade entre os homens. É nessa igualdade que se encontram as pontes, as portas e janelas da humanidade. Nas palavras do Apóstolo Paulo de Tarso, não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque vós sois um só em Jesus Cristo (Gálatas, 3:28). Curiosamente, este Apóstolo encontra-se sepultado na Basílica de São Paulo “Extramuros” em Roma.

A Europa, essa, vive neste dilema da igualdade na dignidade entre os que estão e os que chegam. Os que chegam são “os novos europeus”, como lhes chamou recentemente a revista National Geographic (outubro, 2016).

Mas apesar de se falar nos tais “novos europeus”, a verdade, porém, é que mesmo tendo em conta a razoabilidade e racionalidade dos fluxos migratórios, os europeus, sobretudo os alemães, (que é bom não esquecer, receberam nos últimos dois anos mais de um milhão de refugiados), temem pela sua identidade, temem o que designam por excesso de estrangeirização, (Überfremdung). O que mostra que o que está em causa no debate em curso continua a ser o modo como as pessoas nascidas noutros países se enquadram e adaptam na identidade e nas regras sociais da pátria de acolhimento.

Registe-se que a questão não é fácil, se atendermos a que a USA e a Índia são as únicas potências que estão a crescer demograficamente e que não têm um desequilíbrio excessivo entre a primeira e a terceira geração dos seus nacionais. Ao contrário, a Europa, a Rússia, o Japão e a China vivem com esse desequilíbrio na pirâmide o que faz antever uma inevitável crise na sustentabilidade dos seus diversos modelos de providência social.

Lembre-se também que segundo a ONU, em 2015 havia no mundo 244 milhões de emigrantes, dos quais 21 milhões de refugiados. Cerca de um terço dos emigrantes de todo o mundo após a Segunda Guerra Mundial são acolhidos pela Europa.

Tenha-se ainda em consideração a nova magnitude do problema. Mais de um milhão de refugiados chegou à Europa em 2015. Muitos fugiram da guerra na Síria, no Afeganistão ou no Iraque. Enquanto outras centenas de milhares chegaram já em 2016.

Ou seja, se a liberdade de circulação e a mobilidade dos povos pode ser a garantia da sobrevivência e da sustentabilidade de algumas nações, para outras constituiu uma grande ameaça ao seu bem-estar. Isto é, se a mais recente migração continua a agitar a política, a testar a tolerância e a alterar as identidades culturais da Europa, nos USA já levou a uma vitória surpreendente do candidato presidencial que fez do tema o leit motiv da sua campanha.

Fugindo de territórios destroçados pela guerra em busca de vidas melhores e mais seguras, há décadas que as pessoas deixam os seus países de origem (recorde-se durante os anos setenta a chegada de milhares de vietnamitas à Suécia ou à Holanda). Foram essas vagas humanas que ajudaram a moldar a Europa contemporânea, tal como as sucessivas vagas de emigrantes que procuraram os USA ajudaram a criar a potência mundial que hoje conhecemos.

A propósito, diga-se, que entre nós a situação não é muito diferente e o Presidente do Conselho Económico e Social recentemente falou na necessidade de recebermos cerca de novecentos mil imigrantes, de modo a garantir um crescimento económico de três por cento ao ano no nosso produto interno bruto e assim sustentar o pagamento da dívida e da segurança social. Ao mesmo tempo, segundo dados recentes, Portugal, sempre proclamado como tolerante e de brandos costumes, é o terceiro país da Europa, a seguir à Hungria e à República Checa que se recusa a receber mais imigrantes.

Por fim e mais uma vez, infelizmente, o que esteve em causa nas consultas eleitorais do passado domingo, nessas grandes pátrias da cultura e da história europeias, Itália e Áustria, foram os muros do mundo e não as pontes para reforçar a humanidade. Os resultados agora foram diversos, como sabemos, mas ambos mostraram que ainda não conseguimos prescindir da nossa proteção. Evidenciando que apesar de todas as repetições, ainda não prescindimos da tal caverna primordial que nos ajuda a enfrentar a diferença.

Mais ainda, nas recentes consultas ao povo, os partidos políticos europeus mais radicais, qualquer que seja a sua cor ou extremidade, dão sempre como resposta a exclusão, a expulsão, a filtragem, para impedir os estrangeiros, no fundo defendendo a criação de muros.

Afinal de contas, como diz o autor que inspirou esta crónica, “os muros somos nós a criar distância em relação aos outros, em nome dos valores, dos temores e dos fantasmas que sempre nos atormentam”.

Professor universitário