Na passada quarta-feira, a Assembleia da República chumbou três projectos de lei da extrema-esquerda, que apelavam ao fim do financiamento público das touradas. No mês passado, o Parlamento rejeitou um outro diploma, do PAN, que pretendia inviabilizar a preparação dos cavaleiros tauromáquicos, proibindo a participação de menores em actividades taurinas. O mesmo partido introduziu já uma proposta para banir a transmissão de corridas de touros no canal público de televisão.
Não pretendo discutir os méritos de nenhuma destas iniciativas. Mas é interessante verificar a frequência com que elas brotam do espírito inquieto de alguns dos nossos deputados. Afinal, não passaram três anos desde a última vez em que Bloco e Verdes apresentaram as mesmas propostas ao Parlamento, recolhendo a oposição de todas as restantes bancadas, inclusive do PCP, que parece valorizar mais a presença autárquica no Alentejo do que as divertidas opiniões do seu parceiro de coligação. Dificilmente algum dos proponentes acreditaria que, desta vez, estes projectos seriam miraculosamente acolhidos, pelos mesmos grupos parlamentares que sucessivamente os tinham recusado de forma tão expressiva.
Porém, a sua insistência é reveladora de uma estratégia política de longo-prazo. Bloco, Verdes e PAN são partidários assumidos da abolição das touradas. Como este desígnio é olhado com distância e estranheza pelas restantes bancadas e pela vasta maioria da população, optam por uma abordagem parcelar e incremental, lançando diplomas que parecem mais moderados e compromissivos, mas que abririam brechas profundas na tauromaquia portuguesa, facilitando o objectivo último da abolição. A repetição ad nauseam destas propostas permite que o tema arda em lume-brando perante o olhar atento e solidário da comunicação social. Ao mesmo tempo, um extenso carnaval de petições, associações e manifestações promove a ditadura do gosto e ocupa o espaço público, criando a ilusão de uma enorme pressão social contra as touradas.
Todo o processo é apresentado como evolutivo e dinâmico. Quando isolada numa posição radical e minoritária, a extrema-esquerda apresenta-se como vanguarda esclarecida, anunciando as verdades do progresso e proclamando que a sociedade, sem o saber, já caminha inevitavelmente para o local onde ela se encontra acantonada. Deste modo, no mesmo dia em que vê o seu projecto-lei recusado por mais de 82% dos deputados, inclusive os seus parceiros de coligação, a eloquente Heloísa Apolónia consegue sentir-se vencedora por antecipação e anunciar que “há-de haver uma legislatura em que o espectáculo tauromáquico acaba mesmo”.
Se alcança o seu desígnio, a vanguarda anuncia a chegada à Terra Prometida do progresso abundante, e a irreversibilidade do caminho percorrido. Abandonando o exemplo da tauromaquia, vejamos o que sucedeu com o debate do aborto sem, mais uma vez, discutir os méritos de qualquer das partes.
Em 1998, os portugueses decidiram em referendo que o aborto deveria continuar a ser ilegal, excepto em casos excepcionais. Em 2007, os inconformados progressistas convocaram uma nova consulta popular, argumentando que menos de 50% dos eleitores haviam votado no primeiro referendo e que, passados nove anos, a sensibilidade popular poderia ter mudado. Com efeito, o resultado do segundo referendo foi diferente e a lei sofreu alterações. Contudo, voltou a registar-se uma participação inferior a 50%. Agora, que passaram nove anos sobre o segundo referendo, procurei esperançado por algum dos progressistas da minha infância, que quisesse voltar a auscultar o povo, só para ter a certeza. Naturalmente, não encontrei nenhum. Quando a vanguarda vence um debate, procura encerrá-lo quanto antes.
Infelizmente, reduzir o debate político a um braço-de-ferro entre progresso e retrocesso prejudica o diálogo e inquina os mecanismos democráticos. Na verdade, qualquer facção pode argumentar que as suas ideias são mais avançadas do que as dos seus adversários, mas nenhuma pode realmente prová-lo. Por outro lado, quando se apresenta como arauto do progresso, um agente político está a procurar ganhar mais legitimidade do que os seus adversários, desvalorizando as posições destes como reaccionarismo e recalcitrância. Ora, a divergência e a crítica são elementos estruturais do diálogo democrático, que permitem melhorar propostas imperfeitas e construir compromissos mais abrangentes. Ao progressista militante, porém, o compromisso é estranho, porque significa uma capitulação ao passado. E, por isso, vive em guerra permanente contra tudo o que é estável, antigo e duradouro. E, nessa guerra, perdemos todos nós.