É uma discussão antiga, bem sei. E quiçá perdida. Mas a forma como em Portugal sobrevive mediaticamente uma esquerda não democrática que passa por moderada e mesmo pró-democrata voltou, por estes dias, graças às eleições venezuelanas, a merecer um pedacinho de atenção.

Quando morreu Otelo Saraiva de Carvalho, Carmo Afonso escreveu no Expresso que o que o distinguia do general Spínola era que, enquanto este último pretendia «a reposição da ditadura do antigo regime», Otelo desejava «a concretização da revolução de abril no seu radicalismo, a imposição da ditadura do proletariado», e que, tendo morrido esse «sonho da ditadura do proletariado», ele «não nos envergonha[ria]». Repare-se na dicotomia: não se trata de uma disputa entre democratas e autocratas, mas entre ditaduras, das quais uma delas é boa e a outra má; ora, a primeira, a ditadura boa, é sobejamente tratada como democracia, o que acaba por conduzir a debates demasiadas vezes surdos e onde não raras vezes acaba por vencer a sonsice e a desfaçatez de quem defende ditaduras a que chamam democracias, por falta de escrutínio político, cultural e mediático.

É mesmo absurdo que, cinquenta anos depois, se mantenha viva a ideia de que o processo revolucionário que se viveu então em Portugal se tratou de uma fase de democracia consolidada. O processo teve presos políticos, partidos proibidos, ocupações, exilados, mandados de captura em branco, tortura, perseguições, líderes revolucionários sem legitimidade eleitoral (Cunhal rejeitava a ideia de o país vir a ter uma democracia de tipo ocidental, com parlamento, eleições ou liberdades; outros, como Isabel do Carmo, rejeitavam também a ideia das eleições burguesas, e o PRP, menos pragmático do que os comunistas do PCP, prescindiu mesmo de concorrer a actos eleitorais). Era a democracia boa. Adiante.

A propósito das eleições na Venezuela de domingo passado, uma comitiva dos Populares Europeus, onde se incluía o português Sebastião Bugalho, foi impedida de entrar naquele país. A mesma Carmo Afonso comentou no X: «Confessem: a notícia do Bugalho retido no aeroporto na Venezuela passa a ideia de que foi barrado à entrada do clube. E há uma certa justiça poética, na medida em que se trata de um clube do qual estão sempre a dizer mal.»

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Que interessa, afinal, que o clube seja uma ditadura e que os barrados à sua porta fossem eurodeputados, um dos quais português, interessados na realização de eleições em liberdade e com respeito pelos seus resultados, se daqui a tempos estará na RTP a perorar sobre a democracia e os seus inimigos?

Também no X, um «jornalista», Bruno Carvalho, que nunca escondeu posições pró-russas, pró-ETA ou pró-Hamas, delirava na defesa da democracia venezuelana de Chavez e Maduro. Na SIC Notícias, comentava Marco Farias Ferreira, apresentado sob a inócua designação de «professor de Relações Internacionais», invocando a moderação de líderes políticos como Lula da Silva ou Gustavo Petro, por oposição a María Corina Machado, que, segundo o professor, seria «da direita mais dura». Ora, como bem salientou Gonçalo Dorotea Cevada, no X, Corina Machado defende o direito ao aborto seguro e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, duas realidades que – e porque o diabo está sempre nos detalhes – são proibidas na Venezuela de Nicolás Maduro. O telespectador mais desatento pode ter ficado com a sensação de que a voz académica falaria verdade e que a Venezuela estaria, afinal, a ver a sua democracia em risco perante a ameaça da «direita mais dura». Só que ficou ali por dizer que o «professor de Relações Internacionais» foi candidato às últimas legislativas pelo Bloco de Esquerda, pelo que das duas, uma: ou a sua opinião era académica, e foi pouco sério na análise, ou a sua opinião era política, e neste caso não foi apresentado devidamente ao público.

O mais cansativo de tudo isto não são as opiniões em causa. Elas serão estapafúrdias, pouco sérias, surreais, o que quiserem. Mas são legítimas e merecem liberdade para serem difundidas. O que cansa e aborrece mesmo é a complacência e a benevolência que subsistem, no primeiro mundo, para com um ror de gente que, instalada confortavelmente na sua vida burguesa e usufruindo do capitalismo, pulando de instituto em instituto, de jornal em jornal, de televisão em televisão, passa o tempo a destilar ódio sobre os outros, a dar uso à sua cabeça totalitária e a mentir sobre ditaduras ou movimentos terroristas, desculpando-os, relativizando-os, e ajudando a condenar populações inteiras à miséria ou à chacina, para acabar sempre a conversa com o já famoso «mas aquilo não era bem o comunismo» e com os dichotes do costume, acusando todos os restantes de fascismo. Já não há pachorra.