1 A Constituição Portuguesa é claríssima, quando abre o seu art. 1.º afirmando categoricamente o meta-princípioque fundamenta e preside a toda a economia normativa constitucional da res publica: «Portugal é uma República soberana baseada [sublinhe-se: baseada] na dignidade da pessoa humana…».

A dignidade da pessoa humana é portanto a fonte de que promana, e a rocha sobre que se conforma o inteiro constitucionalismo moderno. Do que resultam dois corolários dignos de destaque. O primeiro é que a soberania política se baseia na dignidade da pessoa humana, e não ao contrário. E o segundo é que os direitos e deveres da pessoa humana, inatos, invioláveis, inalienáveis e irrenunciáveis, são refracções da dignidade da pessoa humana. Provêm e fundam-se nela. Não se autonomizam dela, nem se podem virar contra ela sem contradição.

2 A Constituição poderia, em vez desta tese dogmática, dizer que a República soberana é baseada nos direitos e deveres humanos. Ou dizer — mais resumidamente — que é baseada na liberdade da pessoa humana. Mas não é isso o que diz. Só no art. 2.º é que refere «…o respeito e a garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais»; e então aí, como «base» do Estado de Direito Democrático, ou seja, como submissão dos órgãos do Estado à lei — mas não como base da lei da  soberania, abrindo a porta para que a soberania defina e determine a dignidade humana. Se fosse assim, os direitos e deveres humanos não seriam universais. A sua universalidade baseia-se na universalidade da dignidade da pessoa humana.

3 A questão que portanto se levanta é a da relação entre a soberania e a liberdade: entre a soberania da lei baseada na liberdade fundamental da pessoa humana, e a soberania da dignidade da pessoa humana que determina a lei. A Constituição dá a primazia à dignidade e não à liberdade. E é sem dúvida esta a doutrina do universal constitucionalismo moderno.

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4 Esta foi e é a doutrina do Iluminismo, que fundamentou a Revolução Liberal dos fins do séc. XVIII; foi confirmada pela Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU; e continua hoje a ser defendida como doutrina universal do constitucionalismo moderno. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, também distingue e dá a primazia à dignidade; e só depois aos direitos: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos».

5 Kant deixou-nos uma definição lapidar: «a pessoa humana é fim em si mesma». Dizendo que ela é fim «em» si mesma, não disse que ela é fim «de» si mesma. E se não é «fim de si mesma», então quer dizer que a pessoa não pode dar fim a si mesma, nem pode dispor de si mesma, da sua dignidade. A argumentação de Kant é irrespondível. Ele disse que a pessoa humana é digna porque não tem preço; porque o seu valor é incomparável. Equivale a dizer que é um valor absoluto, ou seja, que está acima de qualquer medida, comparação ou restrição, mesmo que feita por via de lei democrática e invocando o exercício da liberdade.

6 Vem isto a propósito de uma comunicação pública e oficiosa do nosso Tribunal Constitucional, acerca da sua decisão sobre a constitucionalidade do diploma legal da Assembleia da República que pretende legalizar o suicídio, a colaboração activa de terceiros com o suicida e a prática da eutanásia, em certas/incertas condições. Nessa comunicação, foi achado por bem publicitar aos cidadãos portugueses a crítica a uma pretensa argumentação jurídica sobre direitos e deveres humanos, nestes termos: “Direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”.

7 Não consta que tenha vindo a ser este o argumento decisivo dos que fundamentam um dever humano de viver. Os deveres humanos não se fundamentam como transfigurações dos direitos humanos. Porque é que o Tribunal haveria de querer negar expressamente um tal pseudo-argumento?  Não, obviamente, para responder a um pedido que não lhe foi feito. O que aliás criou um grave problema, como muito bem demonstra o constitucionalista Paulo Otero, num artigo já publicado no Expresso. Então para que foi? Foi para anunciar antecipadamente a sua abertura simpática com a doutrina dos defensores da constitucionalidade da eutanásia? Mas porquê uma tal «dica»? Que não está  na função canónica dos tribunais como órgãos de soberania que são?

8 A única coisa que se aproveita, desse inciso, é que o Tribunal admitiu que há um dever de viver. Porque ao dizer que esse dever não é dever «em quaisquer circunstâncias», admitiu que esse dever humano existe. Existe mas… dependendo das «circunstâncias»? Ó coisa tremenda!… Então os direitos e os deveres humanos dependem das circunstâncias?

9 Defender que a existência constitucional dos direitos e deveres humanos depende das circunstâncias é o que fazem a China e a Coreia do Norte; Cuba e Venezuela; Rússia e Mianmar; enfim, «tutti quanti» daqueles «Estados soberanos» que não satisfazem a observância do constitucionalismo moderno, universalizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, e dos seus dois Pactos Internacionais complementares: de direitos civis e políticos e de direitos sociais.

10 Então, é por esta argumentação que vamos, em Portugal, acerca da eutanásia, para agradar àqueles a quem antecipadamente já nos rendemos e reconhecemos vencedores nas chamadas guerras das rupturas culturais e da «cancel culture»?

Faz lembrar a saudação dos condenados a gladiadores romanos: «Ave Caesar, morituri te salutant!».