Imagine-se o leitor ao volante do seu automóvel. Ambiente acolhedor, temperatura perfeita, comodamente sentado ao comando, uma música suave embala-lhe os sentidos, tudo no melhor dos mundos, no seu espaço, de que é dono e senhor.

Tão perfeito, tão confortável é o momento, que lhe apetece partilhá-lo com amigos, e telefona, atende o telefone, escreve um sms. Se calhar bebeu antes de viajar, estava calor e o branco fresquinho, estava frio e o tinto aquece a alma, ou é de espírito aventureiro, carrega no acelerador, já vai nos 180, um pouco mais, a temperatura continua perfeita, a música continua suave, chega aos 200, há um rio de adrenalina a correr-lhe nas veias, e depois.

Depois, sai da estrada, perde o domínio, devagar, depressa, assim-assim. E ainda que nada de fisicamente dramático tenha acontecido, o conforto acabou. O Mundo lá fora é hostil, desagradável, incómodo: chove, ou faz calor, há transeuntes indignados com a sua manobra, a polícia chegou, tem de aguardar, espera minutos, ou horas, vem o reboque, há a perícia, espera, pelo que for.

O mundo confortável e seguro em que vivia bruscamente extinguiu-se.

Caso não tenha ficado ferido, o hiato é curto; depressa voltará ao conforto do seu automóvel, ao calor do aquecimento ou à frescura do ar condicionado, e provavelmente prevaricará menos, já não escreverá sms em plena condução, o ponteiro da velocidade abaixo dos 150, o sinal vermelho é mesmo vermelho e não amarelo tinto.

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Para preservar o mundo confortável que aprecia, o leitor aprendeu a lição.

Mas há muitos que não a aprendem. Que arriscam a perda do conforto, da segurança, do bem-estar. Arriscam, erram, são acusados mas voltam a fazer o mesmo, a errar, a cometer dislates, a defraudar quem neles confiou. E a repeti-lo, se preciso for. Vem isto a propósito do presidente de um qualquer clube de futebol, que incita ao ódio ou à violência, ou promove comportamento ilícitos, ou recebe ilegítimos proveitos, e acaba preso. Não, não tem exclusivamente a ver com a prisão de BdC, até porque não faço a menor ideia se é culpado ou não. Tem a ver com comportamentos que inevitavelmente, tarde ou cedo, hoje ou amanhã, redundarão no fim do conforto a que se habituaram, por cobiça, orgulho e estupidez.

Vem a propósito dos políticos que agem ao arrepio da ética e da moral. Que para ganhar tostões se arriscam ao opróbrio, à exposição num pelourinho que nunca foi tão público e tão perene – que não é físico, feito de pedra e ferro, mas de uns e zeros, uma rede sem fim instantânea, que liga o mundo inteiro e anuncia, agora e para sempre, que o ministro a, o deputado b, o vereador c, o banqueiro e todos quantos prevaricaram, perderam o direito ao conforto do bom nome e da respeitabilidade. E depois.

E depois são os poderosos, os de outrora poderosos, que prevaricam, e não são tostões, locupletaram-se com milhões à custa alheia, sempre à custa dos outros, dos depositantes incautos, dos aforradores ingénuos, dos investidores ávidos e descuidados, dos contribuintes. Demora anos, os processos arrastam-se como lesmas sem cabeça pelos tribunais, suspeito, arguido, prisão preventiva, ou domiciliária, ou termo de identidade e residência, primeira, segunda, todas as instâncias, e finalmente lá vem sentença e inevitavelmente recurso, e depois de tudo, de todos os anos, já com eles velhinhos, doentes, indefesos, a prisão. A cara deles, acabrunhada, nas televisões, máscara de velhos diletantes ofendidos, uma máscara gasta, pior, desgastada. Vergados ao peso do mundo e dos seus pecados.

Durante anos, muitos empresários, gestores, políticos, agentes de futebol, prevaricaram. Corrompidos ou corruptores, viveram acima daquilo que os seus rendimentos legítima e publicamente permitiam. Nesses anos de antigo, muitas vezes passavam impunes, eram ministros, jogadores da bola, tycoons sem mácula, donos de isto e aquilo tudo, entre fidelidades compradas e bens de luxo exibidos, convencidos da impunidade, da eterna cegueira alheia face às suas torpes manigências. E depois.

Depois, tudo mudou. E eu pergunto-me até que ponto alguém que foi alguém e de súbito se vê exposto no pelourinho do julgamento público das redes sociais, da comunicação social, do diz que diz-se, não daria tudo e alguma coisa mais do muito que ganhou para evitar, não a sentença judicial, que demora, mas a condenação pública, a execução de carácter, a lapidação digital. A cara acabrunhada no noticiário das 20 horas.

Que vergonha devem sentir esses homens e mulheres (são quase todos homens) e não me refiro a nenhum em especial para que não me apontem lacunas nessa referência, que envolve todos quantos prevaricaram, enviaram sms enquanto conduziam, delapidaram bancos e empresas, beneficiaram de ajudas de custo ilegítimas e apoios indevidos, conspiraram para defraudar os cofres públicos, enganar os reguladores, enriquecer à custa do empobrecimento alheio.

Não me refiro a nenhum e falo de todos:

Vergonha. E se há alguns anos, talvez muitos, lhes fosse legítimo acreditar que escapariam ziguezagueantes entre os pingos da chuva, hoje é difícil acreditar que acreditem nisso.

Fica a dúvida: fazem-no porque, como Óscar Wilde, resistem a tudo menos à tentação, ou a vaidade e o auto-convencimento impedem-nos de perceber que, continuando a agir como agem, acabarão nas ruas da amargura de uma justiça finalmente actuante, embora lenta? Porque insistem em mentir, defraudar, inventar desculpas, rejeitar culpas, quando a vigilância dos media e do mundo digital torna estulta a ideia da impunidade? Porque o fazem? Depois.

Depois, quando a dúvida se instala e os factos se confirmam, é tarde. Ao contrário do telefonema que certo político fez ao pai há alguns anos, “pai, estou ministro”, não lhes sobrará senão a tristeza e o aviltamento de dizerem: “pai, estou preso”.

Resumo: a única vida digna de ser vivida é a que permite andar de cara erguida, rosto virado ao futuro, sem ter de olhar para os pés com medo de tropeçar na sombra dos próprios erros.