“Anda um espectro pela Europa — o espectro da corrupção. Todos os poderes judiciais da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro”. Com uma única modificação, as palavras com que começa o Manifesto Comunista de Engels e Marx podiam aplicar-se ao flagelo europeu que é a corrupção na política.

A prisão de José Sócrates explodiu com violência nos meios políticos em Portugal, e não só. Mas Sócrates é a excepção e pôs-se a jeito: dos arcanos do aterro sanitário à compra de um singelo apartamento no mais caro arrondissement de Paris, o antigo primeiro-ministro desafiou permanentemente a opinião pública e os poderes judiciais. E ter-se-á beneficiado exclusivamente a si mesmo (e não ao partido, por exemplo). “Prendam-me, se conseguirem” – conseguiram; “provem, se puderem” – vamos ver, mas a narrativa está feita, publicada com todos os pormenores. Sócrates foi já condenado no tribunal da opinião pública, o que não sendo justo é assim mesmo. E ou está tudo doido ou dificilmente escapará à condenação.

Razão tem António José Saraiva, ao chamar-lhe Vale e Azevedo da política: a mesma soberba, o mesmo desprezo pelas evidências, a mesma incapacidade de dissociar ilusão (a sua) da realidade, a mesma convicção de impunidade. Consideravam-se super-homens, queimaram as asas no sol de Ícaro e caíram com estrondo no solo comum dos homens vulgares.

Sócrates, como Azevedo, são a ponta visível do icebergue. Debaixo das águas esconde-se um monstro de escuridão, um espectro que suja a democracia, lança o anátema sobre os políticos e planta as raízes da demagogia. Não é só a classe política que está no pelourinho: como ensinam em Portugal os casos Espirito Santo, Apito Dourado e outros, juntam-se-lhes banqueiros, gente do futebol, empreiteiros, advogados. Mas se são sérias as responsabilidades dos que jogam à roleta russa com as economias de milhões enquanto reservam para si fatias lautas da receita, maiores são as dos políticos. Fiéis depositários do nosso futuro colectivo, exercem como mandatários do povo os poderes gerados pela sociedade organizada, cumprindo-lhes exercê-los honestamente, honrando a confiança de quem neles confiou.

A corrupção, sob todas as formas e designações análogos ou conexas – como o branqueamento de capitais, a fuga ao fisco, o tráfico de influência – parece cada vez mais disseminada na Europa. Mas é possível, e natural, que as autoridades judiciais estejam melhor preparadas, que a própria cultura cívica reconheça e condene tais comportamentos como nunca fez. Os europeus estão muito preocupados, como revela um relatório da União Europeia de Fevereiro deste ano: 76% pensam que a corrupção está espalhada e 56% que aumentou no respectivo país nos últimos 3 anos. A situação é diferente em cada país, com incidência, causas e eficácia do combate a variar drasticamente, sendo certo que é preciso fazer muito mais. Em Portugal, cerca de 90 % das pessoas consideram que a corrupção é generalizada e 36 % afirmam-se vítimas dela no dia a dia. O problema é europeu. Em Espanha o jornal El Mundo fez as contas e concluiu que há no país 466 implicados, 82 condenados e 27 pessoas na prisão, maioritariamente políticos, mas também empresários e advogados, com novos casos a surgir todos os meses. De França nem vale a pena falar, em Itália há muito que a operação mãos limpas introduziu o novo paradigma da república de juízes, o flagelo espalha-se por toda a Europa. E não é por falta de organismos e organizações encarregadas de o combater, das entidades nacionais como o serviço nacional de prevenção da corrupção francês às internacionais como o Greco do Conselho da Europa, Olaf ou até o Eurojust europeu.

Helena Matos escreveu neste jornal uma notável crónica denunciando os verdadeiros culpados pelo caso Sócrates, que diz serem os mais de 2 milhões de portugueses que votaram nele em 2009, apesar de conhecerem os episódios suspeitos sobre a sua vida e actos. Conclui Matos por uma preocupante inversão de valores, extraindo-se a moral da política e confundindo-se responsabilidade política e criminal. Esquece-se de dizer, parece-me, que essa confusão existe há muito: nos anos 80 e 90 a corrupção, a lavagem de dinheiro ou o tráfico de influências nem sequer faziam parte das preocupações políticas, judiciais ou mediáticas e é difícil recordar um só político acusado ou preso por aqueles motivos. Preponderava a convicção popular do “rouba mas faz!” e todos conhecíamos exemplos de autarcas conluiados com dirigentes de futebol, conluiados com empreiteiros, conluiados com advogados e os benefícios de tanto conluio: contas na Suíça, andares “recuados”, carrinhos topos de gama. E ninguém deixava de votar neles por causa disso. Não é preciso grande esforço de memória para recordar histórias contadas em tertúlias de amigos, a envolver políticos conhecidos. Poucas (ou nenhuma?) tomaram o rumo trilhado por Sócrates e alguns, escassos, antes dele, como Isaltino ou Vara.

A verdade é outra e é diferente: as coisas estão a mudar. A mudança tem a ver com a modificação radical da cultura política e cívica. Resulta também do maravilhoso mundo novo da comunicação: nas redes sociais, entre milhões de mensagens estúpidas, falsas ou inúteis, circulam diariamente milhares de denúncias sérias, reflexões consistentes sobre o fio fino da navalha em que o sistema político assenta e os políticos vivem, redes de inteligências que entre si comunicam. O ano passado, um responsável da organização Transparência e Integridade disse em entrevista que haveria em Portugal cerca de 15% de políticos corruptos, o que despertou a indignação de muitos. E é justo, porque se o número for esse, ou parecido, significa que 85% não o são – e sentem-se atingidos com a generalização. Passos Coelho disse este domingo que os políticos não são todos iguais. E tem razão. Mas 15% é muita gente: só para ilustrar a dimensão do problema, seriam 35 deputados da Assembleia, várias centenas entre governantes, autarcas, deputados e outros responsáveis políticos. Imagine-se o estrago, se houver tanta gente a abusar do seu poder e da confiança dos cidadãos?

Partindo do princípio de que, por outro lado, há muito mais políticos sérios do que o contrário, resta-lhes agir para evitar a generalização que mata (a credibilidade e o sistema político): primeiro, criando no seu seio – porque há um seio em que medra e de que se alimenta a classe política – uma cultura de honestidade e verdade, transparência e valores, que faça dos prevaricadores párias e não exemplos a ser copiados; segundo, semeando essa cultura junto dos jovens políticos para que cresçam imbuídos dela, no horror da batota da corrupção; e terceiro, que reforcem a luta contra o flagelo, dando às instituições que o combatem os meios necessários. Talvez assim possamos tornar a escrever, reescrita, a velha frase marxista:

“Anda um espectro pela Europa — o espectro da corrupção. Todos os poderes da velha Europa se aliaram para o erradicar”.

Professor da Universidade Católica – Instituto de Estudos Políticos