Eu sei.

Eu sei que o povo gosta. Refiro-me a programas de televisão como o “casados à primeira vista” ou o pesadelo na cozinha, com o chefe Ljubomir. Desses e de outros do género, espécie de filhos dilectos do voyeurismo e da coscuvilhice, o povo gosta, diz-se.

Eu sei que o povo gosta. Mas afinal do que falamos quando falamos de povo? E eu, e nós, que escrevemos, e ensinamos, e estudamos, fenómenos como este – da governação, da democracia, da coesão social – somos o quê? Se adoptarmos a hermenêutica do filósofo político Sartori, povo pode significar humanidade, conjunto das pessoas do mundo ou de uma sociedade política determinada, pode ser um número elevado de pessoas, uma multidão ou uma categoria social, neste caso os mais desfavorecidos; pode até ser sinónimo da maioria absoluta que apoia um conjunto específico de preferências.

Nos últimos anos, já para além da classificação de Sartori e à bolina do novo espaço público digital, reflectindo a capacidade permanente do ser humano em se adaptar a novas realidades e contextos, o conceito ganhou novos contornos: pode equivaler à opinião pública prevalecente, ou ainda ao objecto da governação, em oposição às elites no poder.

E é disso justamente que se trata, quando se trata de populismo: da invocação do povo puro, a que se contrapõem as elites impuras. Mais, corruptas, logo ilegítimas (e é indiscutível que todo o corrupto se representa apenas a si próprio). É disso que trata João Miguel Tavares, quando no artigo “Nós, as elites, não percebemos nada”, afirma que “o voto de milhões de brasileiros e de norte-americanos, também é contra nós”, voto esse em Bolsonaro e Trump, sendo o “nós” as elites artísticas, intelectuais e jornalísticas. Isto acontece, diz Tavares, porque os poderes de mediação e de persuasão dessas elites, “na era das redes, evaporaram-se de vez”.

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O artigo é excelente, a ideia tem o mérito de colocar a questão no sítio certo. Mas a conclusão, que neste caso é também premissa, está errada, de muitas e inquietantes maneiras.

Em primeiro lugar, a separação entre elites e povo é um dos estudados factores do populismo, talvez o que de forma mais clara o define: apelar ao povo “objecto da governação” contra as elites (invariavelmente corruptas) no poder, é a forma mais primária da afirmação populista.

Em segundo lugar, ao separar povo de elite, excluindo alguns, como eu, como Tavares, como todos os políticos e intelectuais, todos os artistas, da definição de “povo”, é a própria ideia de democracia que soçobra. Porque se o povo encarna a democracia, como queria Toqueville, e esta “o poder do povo sobre o povo” (Sartori), então excluir desse conjunto que deve ser indivisível como base social da democracia um determinado número de outras pessoas, as elites, é negar ao poder assim exercido a natureza democrática. Se importa só o que quer a opinião prevalecente ou se o povo expurga de si mesmo as elites que o governam (governo de que é origem e termo), a democracia fica amputada de uma parte de si. Estiola.

E é por isso que Tavares simplifica quando conclui que o povo (neste caso os brasileiros e os americanos, mas serve para todas as situações semelhantes) usa os líderes que elege para chegar aos seus objectivos, seja lutar contra a imigração, a corrupção ou “defender a vida”. Mas não foi isso que o povo sempre fez ao votar em democracia? E é por isso que a imigração cessa, a corrupção termina ou a vida é mais protegida? Será a democracia agora mais pura e legítima, porque o povo “já não precisa das elites intelectuais para falar, tem o Facebook”? Não será essa uma forma de poder popular sem critério nem escrutínio, sujeita ao mais básico dos instintos e a uma comunicação instantânea não reflectida?

Substituir a reflexão informada, o conhecimento, a informação credível pelo facebook (ou pelo twitter), é boa ideia? A seu tempo, com o recuo e a mediação de formas adequadas de filtragem dos factos, da confirmação das fontes, do uso regular das redes sociais, a própria democracia regenerar-se-á graças ao poder da Internet e do digital. Mas isso não se fará contra as elites, ou sem elas, não se fará sem especialistas, ou contra eles, não se fará sem representantes eleitos, ou apesar deles. Nesse tempo, que pode não estar longe, não haverá povo: seremos todos povo, seremos todos elite.

Até lá, convinha não acicatar divisões perigosas, acalentar discursos (esses sim) populistas.

O povo gosta de casamentos à primeira vista? Provavelmente.  Mas eu, que sou igualmente povo, não gosto. O povo romano também apreciava panem et circenses, mas isso não faz dos gladiadores uma actividade simpática.

PS. Perguntarão os meus leitores fiéis, se é que tenho leitores fiéis, e não o são certamente só os que concordam sempre comigo, pelo contrário, alguns estarão até mais vezes em desacordo do que o contrário e isso lhes agradeço (pois isso me melhora), perguntarão, disse, por que razão escrevo sobre um tema “complicado” numa semana em que, pelo menos e por alto, há uma mão cheia de assuntos sobre os quais escrever: Trump e a fronteira; as eleições americanas para o Congresso; o Brexit em ponto de rebuçado; a sucessão de Merkel; o voto na Nova Caledónia (uma lição, a que gostaria de voltar em breve); o Websummit. E etecetera, palavra tão útil e inútil ao mesmo tempo.

Pois não, optei por escrever sobre o pão e circo a que muitas vezes parece reduzir-se o espaço mediático em Portugal, e não só em Portugal, claro. É mais importante, sob vários pontos de vista, do que muitos desses assuntos. Pois é o nosso futuro que, no presente, estamos a construir e temos de o fazer sobre rocha e não sobre areia, se é que posso socorrer-me da conhecida parábola bíblica.

Prometo aos meus leitores fiéis, e aos outros também, voltar a tratar da espuma dos dias. Já para a semana, se assim o quiser Deus e o Observador.