Quem tiver estado atento aos saltos do Nelson Évora, da Patrícia Mamona e do Pablo Pichardo, já sabe que o triplo salto é bem mais complexo do que apenas saltar três vezes. Cada salto é diferente do outro. Por um lado, o primeiro e o segundo saltos são com o mesmo pé apoiado no chão, enquanto o último salto é dado com o outro pé. Por outro lado, não interessa que um salto seja grande ou que outro seja mais pequeno, já que o que conta é a soma dos três saltos, como se fosse um trabalho de equipa.

Recomendo a quem ainda estiver na praia, que experimente fazer um triplo salto com estas regras, para ver como é difícil. Parece que os pés se trocam no ar e que, afinal, nem sequer conseguimos saltar três vezes, de acordo com estas regras simples, quanto mais querer ainda saltar para longe.

Vem isto a propósito dos saltos que queremos que os nossos filhos deem na vida e, no meu caso, como tenho três, a modalidade de triplo salto é a que sigo com mais atenção.

Este verão, o salto do meu filho mais velho, com 11 anos, foi o de fazer, pela primeira vez, um campo de férias do CAMTIL, que é uma associação sem fins lucrativos que organiza campos de férias para crianças e jovens. São 10 dias a acampar, sem cozinhas, sem casas de banho e sem luz elétrica, numa lógica back to the basics, de modo encontrar na natureza e no encontro com os outros e com Deus, tudo o que precisamos. São 42 crianças da mesma idade, com um conjunto de animadores responsáveis e são umas férias para a vida. As melhores de sempre e para sempre. Eu e a minha mulher, que fomos animadores desses campos, sabemos bem que são as melhores férias e que durante 10 dias ninguém se lembra do telemóvel, da Nintendo ou da Playstation. Mas como dizer isso ao nosso filho, perdido no meio dos écrans e do conforto da casa de férias no Algarve?

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Foi este o primeiro salto. Sem se saber muito bem quais foram as palavras mágicas, o miúdo predispôs-se a ir. Sem conhecer ninguém. Com uma mochila maior e mais pesada do que ele. De comboio e de autocarro, para um terreno à beira-rio ao pé de Águeda. Se acham que isso é chic ou que o glamping está na moda, não sabem do que falo. É campismo puro e duro, sem sequer ter o apoio do parque de campismo. É sentar nuns fardos de palha ou nuns troncos durante 10 dias e comer num prato de plástico, sem mesa, que depois é lavado, com a ajuda de terra, para tirar a gordura. É tomar banho no rio todos os dias com sabão azul, para não poluir. É para meninos, mas não é para meninos! É esta a mística do CAMTIL, que há 40 anos faz a mesma coisa e faz sempre bem. Campos de férias de crianças de 9 e 10 anos (mosquitos), de 11 e 12 (aranhiços), de 13 e 14 (melgas), de 15 e 16, (tremelgas), de 17 e 18 (camaleões) e que depois fecha o ciclo, convidando para animadores, na maioria dos casos, aqueles que acabaram de ser participantes e sabem do que a casa gasta.

Nós que estávamos na primeira fila da assistência a tentar entusiasmar o saltador de 11 anos, ficámos de boca aberta com este primeiro salto. Chamada com alguma insegurança, levantamento progressivo do corpo no ar, a dar às pernas, por ficar sem chão, e lá vai ele a caminho de Santa Apolónia. Quando pensamos que os nossos filhos não nos surpreendem, e que para eles tudo é uma seca que lhes custa imenso a fazer, foi emocionante ver o garoto a aterrar no Intercidades, com outros olímpicos desconhecidos.

Enquanto o meu filho dava o primeiro salto, a minha filha do meio, com 9 anos, preparava-se mentalmente para dar o segundo salto. Num passeio com amigos num barco, viu alguns “crescidos” fazerem ski aquático, tentando esquecerem-se de que já não têm 20 anos e sempre na esperança de não partirem o colo do fémur. Sem ninguém lhe perguntar nada, a miúda avançou de mansinho e perguntou se podia experimentar. Assim, sem ter feito os mínimos olímpicos e só movida pela vontade de arriscar andar sobre as águas.

O ski aquático é tramado. O mais difícil é pôr-se de pé e sair de dentro das águas, como um vulcão, até começar a deslizar. É que, enquanto no ski de neve já se começa na posição certa e depois é só tentar não estragar, até cair, no ski aquático começa-se na pior das posições, ou seja agachado dentro de água. Ora, tal como é difícil dizer a um bebé como é que se deve pôr em pé e começar a andar, o que demora normalmente 1 ano a explicar, é igualmente difícil explicar a alguém que está agarrado a uma corda, como é que se põe em pé na água. O normal é que a força do barco arranque a corda das mãos de quem está dentro de água depois de nos arrastar uns metros, atabalhoada e humilhantemente. Mas depois de várias tentativas de quem não desiste, há ali uma magia qualquer que faz com que o corpo se vá levantando da água, sem se largar a corda e, subitamente, estamos de pé em cima da água, como S. Pedro a sair da barca em direção a Jesus.

Foi este o segundo salto. Também aqui, sem se saber muito bem se foi o exemplo dos mais velhos ou a coragem dos mais novos, a miúda predispôs-se a ir. Assim, sem nunca ter experimentado. Sem ter nada a ganhar e ter alguma coisa a perder, nem que fosse a vergonha de não se conseguir pôr em pé, expondo a sua fraqueza em frente a todos. E nós, dentro do barco, no conforto em que muitas vezes os pais se colocam, a gritar para os nossos filhos fazerem o que nós nunca fizemos, para gostarem do que nós nunca gostámos, para serem os filhos exemplares e os atletas que nós nunca conseguimos ser. E é então que tudo acontece e o segundo salto se dá e tudo parece simples e em vez de estarmos no rio Minho, já estamos no Olímpico de Paris, com uma multidão a aplaudir.

Faltava ainda o terceiro salto. Aquele que fecha o ciclo e torna o triplo salto válido como um todo. O salto que termina na caixa de areia e, por vezes, é o mais desvalorizado, por o saltador acabar de rastos, no meio da areia, sem qualquer beleza e com todos apenas a olhar para os metros alcançados. É o salto que mais dói. O que pode deitar tudo a perder e onde a diferença entre ganhar e perder é sempre mínima. Mas sem o terceiro salto, os outros dois de nada servem, seriam um bailado no ar, mas não uma prova olímpica. Seria como uma estafeta em que apenas um ou dois dos atletas corresse, mas não a equipa toda. É o terceiro salto que pode ou não coroar os saltos anteriores e transformar a areia em ouro.

É aqui que entra o meu filho mais novo, com 5 anos, quando decide, puxando ele pelos pais, mais do que os pais por ele, que chegou a hora de largar a chupeta. Há quem diga que já vai tarde, que isso não é salto que se apresente, que com tão relapsos treinadores, não se faz um campeão. Há quem diga tudo e o seu contrário. Como no triplo salto, todos podem gritar da bancada, mas quem cai com as costas no banco de areia e sabe o que isso custa é apenas saltador e mais ninguém. E se na tenda do “mais velho” ainda há uma colchonete em cima do saco-cama, e se no rio Minho a água doce é um pouco mais mole do que a água salgada, não se deve menosprezar o desafio de aterrar numa caixa de areia, sem colchão e sem o conforto que uma chupeta dá a quem não se lembra sequer como é viver sem a ter. E às tantas somos já nós que resistimos, dizendo que talvez não seja preciso ser tão drástico, nós que vemos o que lhe custa à noite perder aquele para-quedas, e é ele a tentar dar o salto, esticando-se para o infinito, a tentar apanhar os irmãos mais velhos e trocando um “porto seguro” pela conquista de quem também quer saltar sozinho e sem braçadeiras.

No fim, assim contado, parece tudo um pouco ridículo, como são todas as proezas insignificantes que os pais contam dos filhos, mas se não fossem ridículas não seriam cartas de amor.

Para eles, é a vida a acontecer e, depois de tamanhas proezas, lá voltam aos écrans, pois os atletas olímpicos também precisam de vidas normais. Para nós, é uma lição, pois sonhamos a vida toda com os saltos que queremos que os nossos filhos deem e às vezes eles andam ali a saltar ao nosso lado e nós a comentarmos no grupo de pais do WhatsApp que os nossos nunca poderiam ser atletas olímpicos, porque estão sempre agarrados aos écrans.