Ao longo dos já nove anos do seu pontificado o Papa Francisco tem vindo a implementar a reforma da Cúria Romana. Recentemente, no dia 19 de Março, publicou a Constituição Apostólica «Praedicate Evangelium» sobre a nova organização da Cúria, para um melhor serviço à Igreja e ao mundo. Nesta Constituição, o Papa informa de que modo agilizou os Dicastérios em função de um modelo de Igreja mais de acordo com a sua identidade de origem, preparando-os para a mudança de época que estamos a viver. O documento entra em vigor na Solenidade do Pentecostes, dia 5 de Junho, viabilizando um novo Pentecostes na Igreja. Ou seja, pretende dar rosto ao seu carácter de comunhão, à centralidade do Evangelho e à missão evangelizadora.
A atenção redobrada de Francisco ao sacramento da Ordem tem sido uma das suas grandes prioridades, para corrigir a visão deformada que muitos projectaram deste sagrado ministério. Insiste numa perfeita articulação entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos leigos, unidos pela consagração baptismal. Só deste modo podem sobressair os plurais talentos e carismas do Povo de Deus. Para tal fim, o Papa Francisco esbate o excessivo carácter institucional e hierárquico da Cúria, de modo a possibilitar uma melhor compreensão do espírito sinodal da Igreja.
É neste contexto que modifica, também, o enquadramento das prelaturas pessoais, que passam a depender da Congregação para o Clero e não, como anteriormente, da Congregação para os Bispos (Art. 117). A modificação está de acordo com o n. 10 do Decreto «Presbyterorum Ordinis», do Concílio Vaticano II, no qual as prelaturas pessoais dizem respeito ao ministério e à vida dos presbíteros. O Prelado do Opus Dei, Mons. Fernando Ocáriz, comunicou esta mudança aos fiéis da Prelatura na sua mensagem de 19 de Março, assegurando que «a substância da Prelatura do Opus Dei, composta por leigos e sacerdotes, mulheres e homens, tal como estabelecido nos Estatutos que a Sé Apostólica deu à Obra, não é alterada de forma alguma». Algum tempo depois, publica uma Carta pastoral sobre o tema da «Fidelidade» a este mesmo espírito.
De facto, a substância não muda, porque o Papa, com o novo documento, remeteu o Opus Dei para o seu carisma fundacional. Ou seja, consolida a cooperação orgânica entre sacerdotes e leigos através de uma espiritualidade específica, comum, anterior à ereção em Prelatura pessoal. Na etapa da fundação, S. Josemaría, criou a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, em 1943, para incardinar o clero e diaconado secular vindo do então movimento laical Opus Dei. Havia a necessidade de sacerdotes que se dedicassem exclusivamente à orientação espiritual, específica, dos leigos. Contudo, o Pe. Escrivá deparou-se com o problema da articulação jurídica entre as duas fundações. Pensou até deixar a orientação da Obra para se dedicar inteiramente aos sacerdotes. Isto, porque ele próprio era totalmente contrário à clericalização dos leigos, defendia-os na sua identidade própria. Solucionou a questão, em 1950, quando permitiu a incorporação de presbíteros diocesanos nesta Sociedade Sacerdotal. Estes, como associados, não incardinados, receberiam a mesma formação mantendo-se sob a jurisdição dos respectivos Bispos diocesanos. Uma solução bem pensada pelo facto de os fiéis leigos do Opus Dei se manterem também sob a jurisdição dos Bispos de cada diocese, à qual pertencem. Vejamos, então, em que consiste a «substância» do Opus Dei.
Talvez poucos tenham explorado a mensagem de Fátima na sua totalidade. Temos mais ou menos ideia dos diálogos entre os pastorinhos e a Virgem Maria. No entanto, as comunicações entre Lúcia e o Céu prolongaram-se entre 1925 e 1944, já depois de ter ingressado no convento de Tuy, das Doroteias. Várias mensagens que Lúcia recebeu incidiram muito na questão da degradação do clero, em Portugal e em Espanha, bem como do povo cristão. Lúcia escreveu ao Papa, em 1943, para lhe comunicar que os Bispos de Espanha deveriam introduzir reformas entre o clero e o povo. Esta advertência do Céu coincidia com o movimento nascente da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz e Opus Dei. Por isso, o então Bispo de Tuy, D. José López Ortiz, no ano 1945, estabeleceu o contacto entre o seu amigo Pe. Josemaría Escrivá e Lúcia. Foi o primeiro de vários encontros, sobre o Opus Dei, que perduraram até 1972, já depois de Lúcia entrar para o Carmelo, em Portugal. Foi a Irmã Lúcia que insistiu para que este movimento nascente se instalasse em Portugal, o que se concretizou em 1946. A sua dinâmica correspondia ao pedido do Céu.
Com este apoio, o sacerdote Josemaría Escrivá manteve-se firme no modo de articular a estrutura orgânica entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos fiéis, através de uma exigente formação humana, doutrinal e teológica tendo como eixo configurador a teologia espiritual: ascética e mística. Ambos, clero secular e leigos, cresceriam na vida espiritual apoiando-se mutuamente, com base na única consagração adquirida no Baptismo. Deste modo, impediria que se desse a clericalização dos leigos ou a mundanização do clero, que são aspectos destrutivos na Igreja. Foi em função disto que erigiu o Colégio Romano da Santa Cruz, em 1948, para homens, e o Colégio Romano de Santa Maria, em 1953, para as mulheres. A espiritualidade específica da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz e Opus Dei é uma adaptação da espiritualidade carmelita, sem necessidade de votos. Escrivá entendeu que a consagração baptismal se sobrepõe aos votos, porque todos os baptizados participam do carácter profético da Igreja e dão testemunho escatológico, pela configuração a Jesus Cristo ressuscitado. Um aspecto que o Papa Francisco tem reiterado inúmeras vezes.
Quando, em 1982, o Opus Dei foi erigido em Prelatura pessoal, pelo Papa João Paulo II, o carisma fundacional parece ter ficado desarticulado, pois os leigos passaram a estar ao serviço dos apostolados pré-definidos do clero da Prelatura. A ideia de que a figura jurídica de prelatura pessoal passaria a desempenhar o elo de ligação institucional entre o clero secular e os leigos, fez perder força ao anterior elo que é a consagração pelo Baptismo. Esta desarticulação é perceptível no modo como a própria instituição define a Prelatura. Por ocasião das bodas de ouro da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, D. Xavier Echevarría, o anterior prelado, concedeu uma entrevista publicada na revista Palabra, em Março de 1993 (n. 337, pp.29 e ss), onde afirmou o seguinte: «A Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz e a Prelatura do Opus Dei não são realidades idênticas, embora tenham nascido e permaneçam indissoluvelmente unidas. (…) a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz é uma associação clerical própria e intrínseca da Prelatura que com ela forma um todo único e que dela não se pode separar. (…) existe uma diferença jurídica concreta entre a prelatura do Opus Dei e a Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz». Considera que a Prelatura é uma instituição que pertence à hierarquia da Igreja e que é esta estrutura que une a sociedade sacerdotal com o movimento laical Opus Dei. Porém, como as prelaturas são formas de organização do clero os leigos não lhe pertencem, apenas podem cooperar organicamente, com base na mesma espiritualidade e na mesma consagração adquirida no Baptismo. Na Igreja, há um grande défice na compreensão do que realmente significa esta consagração. É este défice que impede o reconhecimento dos plurais talentos dos leigos sob a acção do Espírito Santo.
Em clima sinodal, a fim de esclarecer a cooperação que se dá entre o sacramento da Ordem e o sacerdócio comum laical, o Papa Francisco ofereceu um livro a cada sacerdote presente na Missa Crismal de Quinta Feira Santa; alguns consideram-no como uma Carta pastoral. O autor de «Testemunhas, não funcionários. O sacerdote na mudança de época», é o Bispo de Ajaccio, François-Xavier Bustillo, nascido em Pamplona, e franciscano conventual. Confronta a vida do sacerdote com o mundo de hoje e ajuda à compreensão desta suposta dicotomia. Aponta para uma nova forma de actuação dos presbíteros na Igreja em perfeita colaboração com todos os carismas que a constituem. A colaboração próxima entre sacerdotes e leigos é uma reflexão fundamental no livro, pela importância do acompanhamento que estes últimos podem prestar na vida dos presbíteros, preservando-os do sentimento de solidão e das doenças do foro neurodepressivo. Mas isto não se pode alcançar sem uma sólida formação humana, doutrinal e espiritual de uns e de outros.
Também em 2018, no encontro natalício com a Cúria Romana, o discurso do Papa Francisco foi muito incisivo quanto à degradação do clero e aos escândalos que se lhes atribuíram. Para os incentivar no crescimento espiritual, ofereceu a cada um o Compêndio de Teologia Ascética e Mística, de Adolphe Tanquerey, e disse-lhes: «Considero-o bom. É melhor não o ler do início ao fim, mas procurar no índice uma virtude particular, uma certa atitude, um tema concreto… Far-nos-á bem, para a reforma de cada um de nós e para a reforma da Igreja». Em tempos, este clássico da teologia espiritual, entre outros, era também aconselhado para a orientação dos membros do Opus Dei.
Não pensemos, portanto, que o pontificado do Papa Francisco facilita o declínio da doutrina cristã. Pelo contrário, ele está totalmente no alinhamento dos seus predecessores. O autor do livro que o Papa ofereceu este ano aos sacerdotes, é determinante: «A Igreja não precisa de uma conversão cosmética, mas de uma verdadeira conversão da cabeça aos pés». O sínodo sobre a Sinodalidade caminha nesta direcção, que S. Josemaría vislumbrou e pôs em marcha nos inícios do século XX. Segundo Bento XVI, na homilia que proferiu a 13 de Maio de 2010, no Santuário de Fátima, «iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída».
O caminho sinodal, extensivo a toda a Igreja, prepara uma força conjunta entre sacerdotes e leigos para enfrentarem juntos esta mudança de época, que introduz na vida quotidiana a inteligência artificial, as biotecnologias, as nanotecnologias, a internet 3D, o metaverso (realidade aumentada), a 5G tecnológica. A grande viragem instala-se a passos largos. Só através de uma sólida formação e crescimento da vida espiritual se pode fazer um discernimento correcto entre o mundo real e o mundo virtual.