Foi a primeira vez e confesso que não me soube assim tão bem: votei antecipadamente nas eleições europeias. Feito um balanço rápido, exceptuando as duas presidenciais ganhas por Cavaco Silva e as legislativas de 2011 e 2015, nunca votei em quem ganha – e em 2015 quem ganhou nem conseguiu formar Governo, pelo que, para efeitos desta contabilidade pessoal, aquele voto na PàF equivale praticamente a meia derrota. O que, bem vistas as coisas, talvez demonstre que esta vontade inexplicável de querer votar, mesmo quando as mini-férias e o bocejo me deviam conduzir à abstenção e não a um voto antecipado, se comece a parecer mais com a pulsão semanal com que o meu pai passou anos a apostar no Totoloto do que com uma expectativa real de vir a ganhar alguma coisa com o gesto, no caso, alguma representação num processo transformador. Pelo visto, boa parte do país cede com mais facilidade que eu e deixou, mais uma vez, a sorte dos putativos eurodeputados portugueses eleitos à mobilização das claques partidárias, ou à capacidade de mobilização dos seus mais acérrimos seguidores, o que na prática vai dar ao mesmo.

Mas, e porque um mal nunca vem só, imune a toda esta indiferença de mais de metade do país, a outra pátria, a auto-proclamada inteligente, mediatizada, famosa para si própria e sus muchachos, toda feita de protagonistas, dos anciãos, inutilmente experientes, aos mais pequenitos, assustadoramente insuficientes, não sustém a excitação com os resultados e tem-se desdobrado em análises e comentários, ofegante com a possibilidade de despachar um seu comissário lá para fora, para a Europa nunca nossa. O que me parece, confesso, algo egoísta.

Bem sei, bem sei, que todos os países assim fazem, protegendo e propagando os seus conterrâneos, que há acordos aqui e ali para que um socialista secretarie o Conselho Europeu para que uma senhora (porque as estrangeiras são sempre senhoras, não é?, uma Ingrid qualquer não é a doutora ou a dona) von der Leyen lá alcance os apoios para chefiar a Comissão, sei de tudo isso, como é evidente, caramba, eu votei antecipadamente, tenho um apreço pelas eleições que não é menosprezável, como procurei explicar, e nem cínico é.

Bem sei tudo isso. Mas parece-me egoísta, insisto, que, depois de o país se ter livrado de António Costa, não esteja disponível para o suportar em mais um canal de televisão, perdendo audiências para a telenovela, e procure ajudar os irmãos espanhóis a livrarem-se de Pedro Sanchéz. Nós podíamos estar a dar início a uma espécie de grande libertação, mas preferimos ignorar a epopeia possível e embarcar em duas alternativas: os protagonistas televisivos carregam Costa no andor – que não lhes mace os ombros, coitados, depois de tantos anos de joelhos gastos – e o resto do país encolhe os ombros, entediado, satisfeito por despachar mais um dos seus para onde ele possa falar sem que ninguém perceba de que fala ele, e mudando de canal. Julgo assim resumido o nosso europeísmo, do povo às elites – como se não fossem ambos companheiros, camaradas?, no mesmo inconsequente saco cívico.

Pela pátria, por outro lado, respira-se agora de alívio com a possibilidade de o Governo durar mais do que o inicialmente previsível. Porque Ventura não tem interesse em sujeitar-se a votos tão cedo, Pedro Nuno idem, e cá vamos, cantando e rindo, porventura levados, levados sim. Confesso mesmo que tenho ideia de ter ouvido, na manhã de 10 de Junho, um grandíssimo suspiro, não de um país que morria na data do seu feriado, mas que dava graças pela estabilidade, mais sereno agora pela manutenção de um Governo a quem o futuro dita uma vida de habilidades e consensos e não da aplicação de uma política.

A ninguém parece interessar o ‘para quê?’ em tudo isto. Para que serve António Costa no Conselho Europeu? Para que serve um Governo que não pode governar? Foi porque nos habituámos assim tanto a governos que não governam, mas que gerem como ninguém o poder de quem a eles pertence e apenas isso? Já se fez assim tanta escola de cinismo? Não espante, pois, que a praia, as férias ou apenas o sofá sejam preferíveis à urna eleitoral. As pessoas, em geral, são mais estúpidas do que gostaríamos, mas também não o são tanto como às vezes se julga, e a abstenção não revela incapacidade cívica ou indiferença política. A abstenção é uma espécie de ambientador moral a que as massas recorrem quando o ar se torna irrespirável. E não vejo tão grande mal nisso.

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