Fui injusto. Andei a semana toda a dizer que havia Partidos a quererem celebrar o 25 de Abril como é habitual, enquanto o resto das pessoas está limitado nos seus festejos, mas entretanto descobri que a realidade é um bocadinho mais complexa. Também houve Partidos que, por causa das regras do Estado de Emergência, não puderam assinalar condignamente as efemérides da sua predilecção. Refiro-me, especificamente, ao Partido Comunista Português, que não pôde festejar, com a dignidade que merece, o 150º aniversário do nascimento de Lenine.

O PCP comemorou o 25 de Abril na Assembleia da República, é verdade, mas isso é fraco consolo face à impossibilidade de cumprir o plano de festas que tinha programado para o aniversário de Lenine. No 25 de Abril, os comunistas celebram uma promessa, o que podia ter sido se a Revolução lhes tivesse corrido de feição. Em Lenine, celebram o que foi mesmo. É óbvio que, a escolher, um comunista optaria por vitoriar quem conseguiu instaurar de facto o regime ditatorial pretendido, e não o momento em que se falhou redondamente esse objectivo. Lenine é a memória de uma lauta refeição, o 25 de Abril é a lembrança de ter ficado a olhar para o menu: até tinha bons pratos, mas o máximo que se conseguiu foi cheirá-los. Deve ter doído a alma comunista, poder festejar o 25 de Abril onde é suposto, o Parlamento, e não poder festejar o nascimento de Lenine no local apropriado, uma réplica fiel de um campo de reeducação na Sibéria. Ou duma prisão em Havana. Ou duma favela em Caracas. Ou da Praça de Tiananmen. Ou dum daqueles buracos onde os Khmer Vermelhos enfiavam os marotos. Agora que penso nisso, o que não faltam são lugares simbólicos onde festejar as proezas do leninismo.

Só que as regras são iguais para todos e a quarentena não permite ajuntamentos. Ajuntamentos que, curiosamente, eram uma das actividades preferidas de Lenine. O camarada Vladimir foi responsável por alguns dos ajuntamentos mais famosos da história soviética. Aconteceram há 100 anos, mas persistem até hoje. E é fácil encontrá-los. Basta cavar dois ou três metros e lá estão eles, todos juntinhos: camponeses, burgueses, dissidentes, o que calhar, num ajuntamento que não respeita as regras do distanciamento social, mesmo as que dizem respeito a cadáveres.

O PCP teve, por isso, de se contentar com uma celebração online, onde se destaca o vídeo gravado por Jerónimo de Sousa. O Secretário-Geral bem se esforça por enaltecer Lenine, o “genial continuador de Marx e de Engels”, gabando “o seu legado revolucionário e a actualidade da sua extensa e valiosíssima obra” e destacando “o relevo da figura excepcional de Lenine, de grande intelectual, filósofo, economista e dirigente político de expressão mundial”, mas sabe a pouco. Lenine era mais do que apenas um génio multi-talentoso e merece ser mostrado aos portugueses em todas as dimensões. Era o que se esperava das iniciativas do PCP.

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Conto que, quando o confinamento obrigatório terminar, o PCP possa então mostrar o que tem preparado. Imagino que seja uma espécie de Feira Popular, com atracções para toda a família. Há que não esquecer que Lenine era um homem de família e, no regime que instaurou, aceitava igualmente que fosse o pai, a avó ou o filho a denunciar um parente.

De certeza que vai lá estar uma réplica do histórico comboio que transportou Lenine do exílio até São Petersburgo. Uma espécie de Comboio Fantasma, em que o que assusta não está fora da carruagem, mas lá dentro.

Provavelmente, também já está montada uma daquelas barraquinhas de tiro ao boneco, onde a pequenada pode ganhar uns brindes. Chama-se Terror Vermelho e sai sempre prémio, porque há mais alvos para fuzilar do que gente para disparar.

E, como é óbvio, numa ocasião destas, não vão faltar as roulottes com comes e bebes. Uma de hambúrgueres, sem hambúrgueres. Uma de cachorros quentes, sem salsichas. Uma de farturas, sem farinha. Para celebrar as fomes organizadas pelo regime fundado por Lenine. A única roulotte com alguma coisa é a dos gelados, que vende sorvetes em forma de dedo de condenado a trabalhos forçados que sofria com o frio da Sibéria. Chamam-se Gelags. Ou Gulagos. (Peço desculpa, achei que seria mais fácil fazer um jogo de palavras com Gulag e gelado).

Claro que um acontecimento desta importância não se pode ficar pela parte feérica, tem de ser equilibrado por eventos com o nível apropriado de intelectualidade. Prevejo, por isso, um colóquio com dezenas de oradores, representando os vários matizes do espectro político, convidados para que todo o tipo de opiniões heterodoxas sobre Lenine possam ser silenciadas.

Até ao dia em que o PCP possa honrar Lenine como deseja, temos de nos curvar ao sacrifício dos comunistas portugueses. Pedir-lhes para não festejarem o nascimento de Lenine é como pedir aos cristãos para ignorarem o Natal. A única diferença é que os cristãos crêem que Jesus morreu por eles, enquanto os leninistas têm a certeza que Lenine matou por eles.