Só por má vontade se pode negar que os protestos que têm abalado Cuba são um inequívoco sinal de esperança. Mais precisamente, esperança para todos os viajantes – não confundir com turistas – que ainda têm o sonho de visitar a Cuba imaculada de Fidel e do Che, a Cuba não corrompida pelas condições básicas de vida que tendem a vir com a democracia. Nada temais! Como nos asseguram os manifestantes aos gritos, essa Cuba ainda existe. E, como demonstra a reacção violenta do Governo, está para durar. O paraíso comunista persevera, com a sua miséria, repressão e indignidade humana intactas, pronto a ser visitado por admiradores (à distância) da bonita experiência social e política que os garbosos barbudos levaram a cabo nas Caraíbas.

É um Parque Jurássicomuna, que transporta o visitante desde o conforto moderno do séc. XXI para a carestia medieval. Também do séc. XXI, mas do séc. XXI marxista-leninista. Como o do filme, este parque tem esfaimados. Não são é os velociraptors assassinos, são os cidadãos comuns.

Durante anos, lembro-me de ouvir muita gente recomendar que fosse a Cuba antes de Fidel Castro morrer. Depois disso, juravam, o regime não ia conseguir resistir à pressão americana e soçobraria face à invasão do McDonalds, das cadeias de hotéis, dos micro-ondas baratos, do turismo de massas e, mais cedo ou mais tarde, da liberdade. O povo ia abastardar-se com o comodismo capitalista.

O guia Lonely Planet dizia isto sobre Cuba: “Desafiando a lógica, é o povo que tem mantido o país vivo à medida que as infra-estruturas se desmoronam; e é também o povo que se certifica que Cuba continua o país fascinante, assombroso e paradoxal que é. Essa singularidade é uma mercadoria em risco de extinção num mundo cada vez mais globalizado. Agarre-a enquanto ainda existe”. Exortava-nos a aproveitar a oportunidade de assistir a miséria de grande qualidade, antes que acabasse às mãos de um democrata qualquer. A singularidade (referiam-se à refeição singular que os cubanos comem diariamente) estava em risco. A qualquer momento, o povo podia passar a alimentar-se condignamente, altura em que, de papo cheio, deixaria de se ver obrigado a bajular estrangeiros em troca do jantar. Se queríamos experimentar aquela hospitalidade alegre que só a fome debilitante e o medo de que o visitante não dê esmola provocam, devíamos mesmo visitar Cuba enquanto Castro estivesse vivo.

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Ah, incréus! A falta de fé na capacidade da cúpula cubana se auto-preservar! Fidel morreu em 2016, mas o regime não vacilou. Cuba continua a ser uma magnífica ditadura comunista para visitar. Os cubanos ainda passam fome, ainda sorriem aos estrangeiros se acharem que daí pode vir a próxima refeição, ainda são perseguidos e torturados pela polícia política. Enfim, não se estragaram. Ou melhor: continuaram estragados.

Ainda são os melhores necessitados que podemos encontrar em viagem. Enquanto noutras ditaduras do Terceiro Mundo somos importunados por pedintes analfabetos e desenxabidos, em Cuba é comum os mendigos terem formação superior, oferecendo mais-valias que o visitante ocidental aprecia e recompensa. Até porque a alta qualidade do pobre cubano apazigua qualquer sentimento de culpa que o estrangeiro possa sentir, na medida em que, disfarçada a miséria do interlocutor, parece mesmo que está a conversar com alguém igualmente livre e bem nutrido, em vez de estar a dar esmola a um famélico.

Não são, por exemplo, como os mendigos marroquinos, que maçam com uma ladainha repetitiva, enquanto coxeiam e impingem um pedaço de couro fedorento. Pelo contrário, o mendigo cubano solicita esmola com boa dicção e cultura geral, oferecidas de borla pela Estado. Auxiliá-lo confere prestígio intelectual. Um indigente cubano é capaz de tocar “alguém tem a bondade de auxiliar o ceguinho?” em violoncelo, não é cá com um maçador reco-reco.

É que convém não esquecer os feitos da Revolução Cubana no melhoramento do seu povo. São vários, em áreas tão importantes como a saúde (Cuba ocupa continuamente o top 3 de países do mundo com os melhores cuidados médicos para vítimas de tortura policial), educação (se houvesse imprensa livre, quase 100% da população conseguiria lê-la) e engenharia naval (os cubanos são os mais inventivos construtores de balsas, conhecidos como os MacGyver caribenhos. Depois de dinheiro, a melhor coisa que se pode dar a um cubano é uma noz: proporciona uma refeição e duas embarcações para chegar a Miami).

Claro que há sempre os desmancha-prazeres que procuram desvalorizar a experiência dos viajantes, dizendo que não visitaram uma verdadeira ditadura. Um desses certifica-autoritarismos é o deputado António Filipe, do PCP, que há anos afirmava coisas como: “Considero profundamente injusto classificar como ditador uma personalidade como Fidel Castro” ou “Não qualifico como ditadura aquilo que se passa em Cuba”. É desagradável. Uma pessoa lê isto e, obviamente, fica aborrecida. Pagou à agência Abreu pela oportunidade única de conviver com verdadeiras vítimas do totalitarismo e, afinal, descobre que eram apenas banalíssimos pobres coitados. Assim se estragam umas férias.

Felizmente para quem quer continuar a acarinhar as suas memórias de dias bem passados numa autocracia comunista, o povo cubano atreveu-se a discordar de António Filipe et al. Pelos vistos, acham mesmo que aquilo é uma ditadura. Capaz que sejam delírios provocados pela malnutrição. A larica tem esse efeito nas pessoas.