No ano em que o Parlamento celebra o segundo centenário, vou vivendo a experiência parlamentar na primeira pessoa, escola exímia de danos graves que a classe política causa à sociedade e economia que a sustentam.

Se os portugueses fossem um povo com sede de dignidade, justiça e prosperidade a Assembleia da República seria forçada a parar para pensar o tempo que fosse necessário.

Descobri que a classe parlamentar, esmagadoramente de Esquerda, reservou para si um privilégio extraordinariamente valioso. Fê-lo na mesma medida em que destruiu esse mesmo direito no passado partilhado por diferentes instituições.

O Plenário da Assembleia da República (que reúne os 230 deputados), tal como as Comissões Parlamentares (que subdividem os deputados em áreas de especialidade, em geral correspondentes aos ministérios), impõe rituais institucionais que são estritamente observados. Todos percebem, pelos menos têm a intuição, que sem eles a vida parlamentar tornar-se-ia inviável, depressiva, indisciplinada ou mesmo fisicamente agressiva. A prazo, o valor social e salarial dos deputados tornar-se-ia bem inferior.

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No Plenário, não é tolerável que alguém se dirija ao Presidente da Assembleia da República e demais presentes sem os saudar, ritual institucional que se reproduz nas Comissões Parlamentares: «Senhor Presidente», «Senhoras e Senhores Deputados», «Senhoras e Senhores Membros da Comissão», por aí adiante. Também ninguém se dirige aos outros por «Ele», «Tu», etc., mas «Senhora Deputada», «Senhor Deputado», «Vossa Excelência», etc. Sendo o ser humano propenso a lapsos, sobressai de imediato a censura. E muito bem!

Não há fórmula alternativa de contrariar a erosão de instituições que vivem da relação entre pessoas, por natureza diferentes, sendo que o que está em causa é decisivo justamente por não remeter para momentos pontuais ou excecionais, mas para quotidiano habitual da instituição.

Antes da atual classe política «democrática», «inclusiva» e de «Esquerda» conquistar o poder hegemónico que hoje ostenta, os rituais referidos eram partilhados pelas famílias, salas de aula, consultórios médicos, na relação com os polícias, bombeiros, por aí adiante.

Nunca me dirigi à minha mãe, pai ou tios por «tu», mas a vida acabou por me impor que o meu filho o faça. Entrei na escola a dizer «Bom dia, Senhora Professora», entre outros rituais de conduta, para anos depois me tornar professor a ter de aprender a escapar ao «tu-cá-tu-lá», a ter de cultivar por mim mesmo a distância ritual como fundamento da autoridade, contra a pressão insuportável da escola «progressista», «de esquerda» e, mais recentemente, «inclusiva».

Os mais velhos em tempos de infância e adolescência conheceram a deferência, na forma e conteúdo, com que tratavam o «Senhor Padre», «Senhor Doutor», «Senhor Polícia», por aí adiante, o que lhes foi negado pelo «progressismo» quando chegou a vez deles. O igualitarismo esquerdista desbaratou essa velha lógica civilizacional paradoxalmente a partir da Assembleia da República, instituição hoje dominada pelos que defendem o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública, mas frequentam o hospital privado e colocam os filhos no colégio também privado.

Quem tiver saudades do passado pode visitar o museu chamado Assembleia da República. Saberá como o Regime tem sido o mago das palavras capaz de sugar e esterilizar uma sociedade inteira para subjugá-la.

Sugiro a alunos das escolas que visitam a Assembleia da República que tentem falar nas galerias do Plenário, tal como fazem nas salas de aula ou pavilhões das suas escolas. O mesmo com os demais cidadãos que assistem a sessões parlamentares, incluindo para presenciarem debates de assuntos que lhes interessam.

Tudo grosseiramente óbvio: na tradição cívica da Terceira República o trabalho do deputado é sagrado, é para respeitar, nunca se perturba fora de regras estritas. Pelo contrário, que se lixem a missão ou trabalho da mãe, professor, médico, polícia, bombeiro, por aí adiante. As práticas manifestas e latentes da classe política ensinam que não é dos últimos que depende o futuro, a dignidade e a prosperidade económica do país, mas do quotidiano sacrossanto das Deputadas e dos Deputados, da Divina Política.

Enquanto o deputado saturado do momento pode sair do espaço onde está para apanhar ar sem censuras, o professor, médico, polícia ou bombeiro não disfrutam desse privilégio. E enquanto os deputados são uma classe suficientemente paga para estar calada e comportar-se, pelo menos quando necessário, o professor, médico, polícia, bombeiro, etc. têm de enfrentar quotidianos inevitáveis de relacionamentos pessoais bem mais exigentes ou abertamente hostis. Logo, os rituais institucionais tendem a ser mil vez mais decisivos fora do Parlamento do que dentro dele, mas a classe política impõe justamente o inverso.

Não é normal que uma sociedade tida por normal, passo a redundância, tolere que uma casta – a política – destrua rituais institucionais que não os seus, semeie a anomia social, ao mesmo tempo que reserva como exclusivo seu o privilégio da funcionalidade institucional da sua Assembleia da República, por cima se autodenomine «democrática».

Além da erosão da funcionalidade e coesão das famílias (protegê-las é uma missão maior do Chega), não foi o destino que empurrou os rostos por excelência do Estado Social (médicos, enfermeiros, professores, polícias) para estados de depressão. Retrato do poder de uma personalidade coletiva – a Esquerda – egocêntrica e cobarde: «Eu prometo, mas pagas tu!».

A rutura patológica entre a Política e a Sociedade é sintoma da rutura irreversível dos regimes. Daí que os seus defensores rosnem a torto e a direito «populismo» a quem se indigna com um poder mental perverso.

A rutura em causa corrompeu, necessariamente, o Estado de Direito, em rigor o Espírito da Lei. Pelo que vou verificando nesta minha curtíssima experiência parlamentar, há uma dissociação patológica entre o conteúdo formal e jurídico da lei e a sua função social. Não é inusitada a hipótese do atual Regime ter assassinado o valor social das leis.

As leis só se transformam em fenómenos sociais, a sua razão de ser, quando são simples, claras e estáveis no tempo, uma vez que a lei não existe apenas para servir o trabalho do inspetor ou do juiz, mas sobretudo para os cidadãos saberem quais os instrumentos que regulam o seu quotidiano. Se assim não for, as leis resumem-se a armadilhas que a classe política coloca aos cidadãos.

É a simplicidade e estabilidade no tempo que faz com que as leis entram progressivamente na cabeça das pessoas comuns, se sedimentem nas instituições, vão passando de pais para filhos, tornem-se representações sociais, isto é, fenómenos sociais (leia-se Serge Moscovici). Uma classe parlamentar que ignora esse princípio não só corrompe a função social da lei, como se torna ela mesma e a respetiva sociedade escravas da lei.

A vida parlamentar atual é toxicodependente da disputa pela elaboração de leis contra os princípios mais elementares do contrato social ou da racionalidade social. Paradoxalmente, se um grupo parlamentar menor tentar escapar a tal teia fica fora do radar da comunicação social arriscando a sua sobrevivência.

Não vale a pena ser romântico. Não responder à fúria legislativa adversária é cavar a própria sepultura, é morrer sem sequer tentar resistir à virulência legal «progressista». Custa-me admitir dentro do meu próprio grupo parlamentar, mas pelo menos para já o Chega não terá hipóteses de afirmação se não se adaptar ao princípio da realidade face a uma comunicação social estupidamente hostil.

Em suma, o Regime entrou em estado de falência irreversível e jamais serão os vícios dos seus fundadores a reformá-lo.