Em texto anterior disse que para prevenir o federalismo furtivo e utilitarista é indispensável fazer o debate público sobre o “governo dos bens comuns da União”, no sentido em que os Bens Comuns da União são a verdadeira “reforma estrutural” que falta fazer na União Europeia, pois eles são portadores de um sentido genuíno de futuro e permitem pensar o estado da política para lá da política do estado.

Quero insistir neste ponto porque ele está no âmago da questão do programa de reformas. Sem uma reforma estrutural na União Europeia no sentido do federalismo cooperativo, não são só as linhas de fractura que se avolumam todos os dias, são também os “programas nacionais de reforma” que marcam passo e que acabam, no final, por ser atropelados e submergidos por uma condicionalidade europeia marcada sobretudo pelos programas de estabilidade, ajustamento e empobrecimento, uma forma eufemística de continuar os programas de resgate. Agora que se fala novamente do PNR importa sublinhar esta dupla condicionalidade: de um lado, uma condicionalidade europeia que poderíamos denominar de “vigiar e punir”, do outro, um partido-estado nacional que tem sabido capturar e impedir qualquer veleidade de reforma do Estado-administração.

Entre uma globalização desregulada e predadora e uma Europa à la carte não há muito espaço para um pequeno país que se recusa a fazer um compromisso histórico interpartidário para levar a cabo o seu programa nacional de reformas. Assim, obviamente, o partido-estado situacionista toma conta da ocorrência. Sendo o “governo dos bens comuns da União” a primeira grande reforma estrutural a empreender, olhemos agora para o plano doméstico e vejamos, nesse contexto, como se apresenta a nossa ordem de prioridades.

I. Do partido-estado, a reforma do sistema político da 3ª República

O partido-estado é uma criação e um produto do neo-corporativismo da 3ª República nascida com o 25 de Abril de 1974. Três razões principais podem ser apontadas. Em primeiro lugar, o exclusivismo partidário na estruturação e formação da cultura política dos cidadãos que, de resto, foi sendo alimentado pelo sistema eleitoral proporcional de listas fechadas e pelo controlo estrito das direcções partidárias sobre a selecção de candidatos aos círculos plurinominais de dimensão muito variável. Em segundo lugar, o rotativismo partidário do bloco central que estabeleceu uma espécie de acordo político tácito no que diz respeito à protecção dos interesses particulares dos dois maiores partidos e à distribuição das respectivas prebendas. Em terceiro lugar, a abdicação precoce da chamada sociedade civil que preferiu, desde muito cedo, a cumplicidade e os jogos de sedução político-partidária para resolver os seus problemas.

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Este imenso território escorregadio, feito de cumplicidade, sedução e oportunismo, foi encorpando com o tempo enquanto crescia a abstenção eleitoral e a indiferença política. Entretanto, estreitava-se o campo de recrutamento de novos militantes mas alargava-se o campo de obediência como condição de acesso, justamente, ao partido-estado. É a este conglomerado de interesses, oportunidades e obediências, muito variados e eminentemente contraditórios, que aqui denominamos de partido-estado. Na sua génese, pois, está o rotativismo partidário. O partido-estado é, portanto, o resultado “natural” da cristalização do eixo PS-PSD, da sua alternância no poder, segundo uma espécie de acordo de cavalheiros que visa minimizar ou mitigar os danos colaterais de natureza político-partidária causados pela rotação eleitoral.

O partido-estado pode, portanto, ser definido como o conglomerado ou a constelação de interesses e poderes que vivem e sobrevivem acoplados aos diversos aparelhos do poder do Estado e que, para o efeito, construíram uma rede de interdependências de tal ordem que estão, para o melhor e o pior, prisioneiros desse mesmo Estado dos interesses.

Num outro registo, podemos definir o partido-estado, em sentido amplo, como o conjunto de agentes prestadores e beneficiários, directos e indirectos, permanentes e circunstanciais, que vivem dentro e à volta do Estado e que, por via do orçamento e através dele, estruturam uma rede arterial e capilar de tal modo densa e fina que vivem permanentemente o “dilema do prisioneiro”.

Numa terceira acepção, podemos definir o partido-estado como um campo que providencia expectativas positivas, de estabilidade, previsibilidade, permanência e segurança, que suscita e estimula a nossa adesão, ainda por cima cobertas por um conjunto de direitos, liberdades e garantias de ordem constitucional, de tal modo que legitimam e justificam a existência de um meta-partido para lá das divisões político-ideológicas dos partidos do sistema em vigor.

O partido-estado é, pois, um meta-partido, uma espécie de guardião do regime e de todos os direitos adquiridos, sempre ausente mas sempre omnipresente, o partido-constituição por natureza. O partido-estado é o “partido do povo”, o partido dos interesses permanentes, mesmo que seja um partido inorgânico, pastoso, conglomerado e difuso. No plano formal é um partido virtual, um partido nuvem, mas no plano material é um partido clientelar, onde reinam e se experimentam, recorrentemente, o calculismo e a táctica político-partidária.

O partido-estado é, por isso, um campo de treino por excelência, por onde circulam e se formam as chamadas elites partidárias e se faz a chamada reciclagem dos dirigentes partidários. Este campo de treino é imenso, pois o partido-estado tem ramificações fora do aparelho de Estado, uma vez que se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vai-vem permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental.

O partido-estado está lá para ser instrumentalizado pelo rotativismo partidário, por isso, no sistema de trocas em que está envolvido com os partidos do poder, usa de toda a cumplicidade, duplicidade e ambiguidade que o regime lhe proporciona. Não gosta de pactos e acordos de regime ou de outros tipos de compromisso de médio e longo prazo que lhe ameacem a condição e o estatuto, com o receio de que esses actos venham a clarificar a situação nebulosa e difusa em que se move. Do mesmo modo, o partido-estado não gosta, também, de intrusos exteriores que perturbem a sua extensa zona de conforto.

No partido-estado privatiza-se o benefício e socializa-se o prejuízo, porque está baseado no princípio geral do cinismo, aquele em que o contribuinte anónimo é o pagador de último recurso, por via do Estado e do seu orçamento. O partido-estado é, essencialmente, um partido-bastidor-corredor, por isso não lhe interessa muito a accountability do sistema político e muito menos os 4E da administração e gestão pública modernas: a eficácia, eficiência, equidade e efectividade.

Finalmente, no situacionismo que está implícito na ideologia dos direitos adquiridos e do status quo, o partido-estado é, de certo modo, o único vencedor antecipado de todas as eleições e, de acordo com a sua ideologia, o destinatário privilegiado das promessas do partido vencedor. Devido à sua grande dimensão, ele espera que essas promessas sejam respeitadas e cumpridas, porque o partido-estado se acha o herdeiro legítimo do status quo político-administrativo, o único que pode fazer com competência e tranquilidade a passagem do testemunho.

Em conclusão, perante a fadiga político-institucional da 3ª república, reformadores políticos precisam-se, a 4ª República espera por si.

II. A equação orçamental do partido-estado, a reforma da despesa pública e a transição para a união política europeia

O crescimento do partido-estado é uma constante dos últimos quarenta anos, mesmo nos anos Troika. O seu crescimento tem muito a ver com os movimentos de contracção e dilatação do perímetro orçamental, isto é, com as operações de desorçamentação e reorçamentação que foram sendo realizadas, de acordo com as necessidades, umas vezes, e com as conveniências, outras vezes. Numa acepção ampla de perímetro orçamental, este tanto se reporta ao Estado central como ao Estado Local e também à chamada administração autónoma do Estado. Temos, assim, no conjunto, quatro áreas ou territórios de que se alimenta o partido-estado: o Estado Central, o Estado Local, o Estado administração autónoma, o Estado empresarial. As elites do bloco central circulam, obviamente, nos territórios imensos definidos por estes quatro sub-sectores do Estado.

Mas as elites partidárias são “apenas” os ocupantes ocasionais do partido-estado. Há uma gama imensa de interesses de todas as dimensões e naturezas que gira à volta do Estado-administração e que formam o tecido socio-politico do partido-estado: o funcionário público que aufere os seus vencimentos, os beneficiários que recebem os apoios sociais que lhes são devidos pela sua especial circunstância, os aposentados que recebem as suas pensões, os investidores que auferem de benefícios fiscais muito variados, os fornecedores que contratam com o Estado e aguardam os seus pagamentos, as empresas e os cidadãos em geral que, por via do imposto ou de taxas, mantêm relações frequentes com a administração fiscal, quantas vezes sob a forma de contencioso tributário e execução fiscal. Estamos a falar, na generalidade, de ”usufrutuários e utentes do partido-estado”, um número compreendido entre 5 e 6 milhões de cidadãos.

Quer dizer, toda a gente, em algum momento, tem relações úteis e/ou perigosas com o partido-estado. Em algum momento das nossas vidas, todos somos sujeito ou objecto de “tráfico” com o partido-estado, porque, simplesmente, numa altura de maior exposição nos deixámos seduzir ou iludir pelas suas promessas. Sabendo isso, os “partidos do sistema” armam a sua táctica política em constante interacção com o partido-estado, pois têm lá dentro muitos insiders seus que utilizam para instrumentalizar o conglomerado do partido-estado. Esta adaptação permanente dos “partidos do sistema” já conduziu a uma redução da sua vocação programática e a uma convergência política de conveniência ditado pelas necessidades de manter o partido-estado sob a sua influência de acordo com as necessidades particulares de gestão do ciclo político-eleitoral.

Para providenciar as trocas que são necessárias, o partido-estado, através dos seus “círculos interiores” e dos seus “agentes principais”, vive alojado na rede capilar dos partidos do sistema e parasita essa rede que está muito próxima dos corredores do poder instituído. O partido-estado tira partido e vantagem do tráfico de influências e dos sindicatos de voto que são movidos pelos “círculos interiores e os agentes principais” dos partidos do sistema. Por isso, o partido-estado está sempre pronto a ser arregimentado para mais uma batalha, embora não dispense a ideologia dos direitos adquiridos e carregue consigo a inércia própria que o caracteriza.

Neste contexto, o partido-estado e a constelação de poderes que lhe está subjacente fazem ruir qualquer tentativa de revisão profunda da “equação orçamental” que procure responder aos problemas estruturais da sociedade portuguesa. O partido-estado é um partido transversal, um transpartido e um porto de abrigo, que acolhe cerca de 6 milhões de portugueses que, directa ou indirectamente, dependem das suas remunerações, benefícios, prestações e contratos. O partido-estado converteu-se na vaca sagrada do regime, o seu derradeiro tabu. Representa quase 50% da riqueza anual produzida num país que “se recusa a crescer”. É possível rever a dieta alimentar desta vaca sagrada?

O partido-estado, a vaca sagrada do regime democrático da 3ª república, a república do 25 de Abril de 1974, foram postos em risco por causa de um intruso externo chamado Troika, entre 2011 e 2014, credor oficial de 78 MM de euros, cerca de 40% da dívida pública portuguesa. Na nossa história recente, o partido-estado sofreu dois abalos sísmicos de intensidade elevada, em 1978-79 e em 1983-85. O problema foi ultrapassado, na altura, com a assinatura de duas cartas de intenções com o FMI e, no plano interno, por dois cortes profundos dos salários reais que fizeram o ajustamento sem cortes dos salários nominais. A emissão de moeda própria, a ilusão monetária e a inflacção (acima dos 20%) tornaram o exercício de ajustamento aparentemente mais suportável.

Qual é a ilacção mais importante que se pode retirar, desde já, destes três “momentos altos” da vida nacional? Tudo leva a crer que o país não aprendeu a lição, não fez as reformas estruturais que se impunham, o partido-estado continua vigoroso, ficaram as desigualdades sociais e os sinais de pobreza crescente e as recaídas futuras como uma forte possibilidade real.

Com efeito, o programa de assistência económica e financeira imposto pela Troika em 2011 desferiu, aparentemente, um golpe profundo no partido-estado, sobretudo na sua estabilidade, segurança e previsibilidade. Mas, mais uma vez, teremos de perguntar: as reformas estruturais vão finalmente modernizar o país e emagrecer o partido-estado ou quem vai emagrecer é o povo português à custa da obesidade do partido-estado?

A equação orçamental do partido-estado é muito simples: mais despesa, menos imposto, mais dívida, melhor gestão corrente da dívida. A chave desta equação é a expectativa de que o crescimento do PIB nominal aumente a receita fiscal e reduza a necessidade (o peso) de dívida pública. Esta expectativa, porém, não se confirmou na última década, o défice e a dívida têm crescido continuadamente para lá dos limites do que é razoável ou sustentável. Outra das regras desta equação orçamental do partido-estado considera que este tolera algumas “maldades orçamentais” na primeira metade do ciclo eleitoral de quatro anos, mas exige que seja compensado dessas maldades na segunda metade do ciclo eleitoral.

Em matéria orçamental, o lema do partido-estado, “a dívida não é para pagar, é para trocar e para rolar”, está definitivamente posto em causa. Com efeito, os partidos do sistema vivem o dilema do prisioneiro: para se libertarem das restrições da equação da dívida correm o risco de perder uma parte importante do partido-estado necessária à sua reeleição, por outro lado, para manterem a influência sobre o partido-estado vão ter muitas dificuldades em se libertarem da equação da dívida.

Hoje, em 2016, sem moeda própria e com uma reduzida autonomia orçamental, com taxas de inflacção e crescimento do produto muito baixas e com limites orçamentais para cumprir impreterivelmente no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, estamos numa situação económica e financeira sem escapatória, ou seja, o partido-estado está pela primeira vez obrigado a fazer uma pesada cura de emagrecimento que corresponderá a uma redução em redor de 10 pontos percentuais no peso da despesa pública total no PIB, mais em linha com a receita fiscal que é possível arrecadar numa conjuntura de muito fraco crescimento do produto. Este corte estrutural da despesa pública diz respeito a cerca de 20/25 mil milhões de euros e corresponde a uma situação orçamental com excedente primário que se afigura indispensável para começar a amortizar dívida pública. Com o programa da Troika já foi possível cortar cerca de 10 mil milhões de euros na despesa pública.

Do que se disse, decorre imediatamente uma contradição insanável: sem crescimento económico elevado, acima dos 5 a 6% de crescimento nominal nos próximos anos, o partido-estado e a equação orçamental do partido-estado estão definitivamente postos em causa pelo programa da Troika e pela próxima fase da UEM, a chamada união orçamental e, de uma maneira geral, pela designada “teoria geral da condicionalidade” que decorre das próximas fases da integração europeia, correspondentes à segunda fase da união económica e monetária e ao lançamento das primeiras pedras da união política europeia (UPE).

Estas razões ditadas pelo enquadramento europeu, a 2ª fase da UEM e o lançamento da UPE, fazem apelo e justificam, no plano interno, uma frente política com o mesmo nível de exigência e ambição, a pôr em prática tão rapidamente quanto possível. Assim, torna-se necessário e urgente o seguinte imperativo categórico: um compromisso histórico interpartidário no horizonte 2024, uma revisão constitucional no quadro da UEM II e da UPE, um programa de reformas do Estado para duas legislaturas e, por último, mas em simultâneo, um programa de reformas estruturais para o desenvolvimento económico e social também para duas legislaturas.

Este imperativo categórico teria a seguinte expressão orçamental: trazer a despesa pública total para 40% a 42% do PIB em 2024, a carga fiscal para níveis compatíveis com a competitividade fiscal (por exemplo, uma flat rate de 15% em 2024), o crescimento do PIB para taxas próximas de 5% a 6% de crescimento nominal anual, o saldo orçamental primário para valores positivos entre 2% e 3% em 2024 e o défice global para valores próximos do equilíbrio orçamental e trazer, finalmente, a amortização da dívida pública para valores próximos de 3% anuais, de acordo com o que estabelece o tratado orçamental da união europeia mas sempre numa abordagem flexível da política orçamental para não prejudicar o investimento, público e privado, e o crescimento do produto potencial.

III. A reforma do Estado-administração, a grande reforma estrutural da 3ª república

Os sistemas político-administrativos deixaram de ser uma variável exógena do processo mais geral de modernização das instituições políticas. No século XXI, a “tecnologia política” do Estado-administração está sujeita a uma pressão e obsolescência constantes se pensarmos, por exemplo, nos movimentos de globalização, de integração regional supranacional e de descentralização infranacional, no conjunto, aquilo que hoje a literatura designa como processos de “governação multiníveis”. Agora que se fala tanto em reforma do Estado, deixo aqui alguns princípios gerais que deverão informar a reforma do Estado-administração.

1) Não há reforma sem uma profunda recomposição das missões e estrutura do governo central, cabendo-lhe desempenhar, essencialmente, funções prospectivas, normativas, regulatórias, inspectivas e contratuais e, dessa forma, acautelar, também, o excessivo pendor corporativo das estruturas ministeriais;

2) Não há reforma sem a formação de um “governo mais policontextual”, isto é, um governo que considere as leis-quadro, o sistema de planeamento, os orçamentos de base-zero e os contratos-programa como instrumentos privilegiados de enquadramento da administração pública e, em especial, de uma arquitectura mais policêntrica para a administração do território que, neste governo de contexto, se tornaria a principal coluna executiva do país;

3) Não há reforma se não investirmos mais na “delimitação do interesse público”, na discriminação positiva dos mais desfavorecidos, na organização dos interesses difusos e na economicidade das formas organizativas desse mesmo interesse público, isto é, em modos inovadores de administrar bens comuns e bens públicos;

4) Não há reforma se insistirmos na confusão analítica entre cliente e cidadão, aceitando com ligeireza que os métodos e as técnicas de gestão se possam sobrepor e substituir às deliberações políticas do espaço público administrativo e territorial; hoje em dia, e cada vez mais, a percepção do cidadão não confunde o funcionamento da administração com a justeza e a justiça das políticas públicas locais e regionais;

5) Não há reforma que seja independente do processo de crescimento económico, isto é, uma política económica de “stop and go” não pode converter a política de coesão territorial em instrumento conjuntural de gestão da procura agregada, sob pena de “descontinuarmos” a política regional e uma questão de regionalização do território se transformar num problema mais sério de regionalismo político;

6) Não há reforma se desistirmos de acreditar ou certificar as “organizações de interesses”, associativas ou outras, do lado da procura; trata-se de dar conteúdo genuíno à democracia participativa e evitar a manipulação mediática e partidária que só a pressão da procura e um verdadeiro contencioso de responsabilidade podem acautelar;

7) Não há reforma sem um grande esforço de modernização político-administrativa ao nível intermédio de administração regional; esta nova racionalidade territorial é a trave-mestra para reformar as administrações, central e local, e relocalizar as suas missões e funções, ao mesmo tempo que impede que a administração periférica do Estado seja facilmente capturada pela implantação territorial dos aparelhos partidários e respectivas clientelas e sindicatos de voto;

8) Não há reforma sem um equilíbrio saudável entre jurisdições fixas no território, autarquias e seus derivados, e jurisdições funcionais correspondentes à “geometria variável dos interesses”, mais formatadas as primeiras e mais compreensivas as segundas; é preciso criar instâncias de concertação acreditadas entre os dois níveis de jurisdição;

9) Não há reforma sem um equilíbrio harmonioso entre as várias formas e dispositivos de administração pública, desde a administração mais tradicional até às plataformas virtuais, com passagem pela administração de consulta e as várias modalidades de administração “sob contrato”, sempre com o objectivo de promover o acesso universal mas diferenciado e, assim, evitar a infoexclusão de alguns segmentos de população da sociedade sénior;

10) Não há reforma sem uma consideração ponderada da auto-estima dos agentes político-administrativos, ou seja, é um imperativo ético e deontológico rever imediatamente o estado da arte em matéria de interesse e serviço público, de delimitação e realização do bem comum, de estabilidade de carreira, do sistema de estímulos, sanções e remuneração correspondente.

Se quisermos, este decálogo do Estado-administração transporta-nos para um novo espaço público onde os conceitos da “velha ordem” político-administrativa, de poder vertical e comando e controlo, darão lugar, pouco a pouco, aos conceitos da “ordem nova”, aqueles que podem ser reportados a uma sociedade mais colaborativa e contratual, com mais poder lateral e uma composição do território mais heterárquica, policêntrica e cooperativa onde residirão, seguramente, as áreas de maior inovação do futuro Estado-administração. Estou a pensar, em primeira instância, nas relações entre regiões e municípios e, de uma maneira geral, as relações entre os futuros territórios-rede do federalismo cooperativo da união política europeia.

Quanto à reforma do Estado-administração em concreto, ela visa, justamente, reduzir substancialmente o partido-estado e a constelação de interesses e poderes que cercaram o Estado durante os últimos quarenta anos, segundo o princípio “menos Estado, melhor Estado”. A reforma do Estado-administração fará parte integrante do compromisso histórico para 2024 (meio século após o 25 de Abril de 1974) e será reportada às grandes funções do Estado, a saber:

  • O Estado soberano: rever as missões de soberania e a estrutura de poderes soberanos,
  • O Estado social: rever os regimes de protecção social na sua acepção mais ampla,
  • O Estado fiscal: rever a estrutura dos benefícios e estímulos fiscais com vista ao crescimento,
  • O Estado empresarial: rever os limites do “perímetro empresarial do Estado” e o programa de parcerias público privadas,
  • O Estado regulador: rever toda a administração autónoma em matéria regulatória,
  • O Estado local e regional: rever os princípios estruturais e organizativos da administração local e regional,
  • O Estado financeiro: rever os princípios da responsabilidade fiscal e financeira do Estado.

A reforma do Estado, com a solenidade que aqui deixo, poderia ter o alto-patrocínio do Senhor Presidente da República por que se trata verdadeiramente de uma tarefa de Estado. Um grupo de missão poderia encarregar-se das diferentes reformas do Estado-administração cujo resultado final seria, por exemplo, um conjunto de propostas programáticas para a 4ª República. Oxalá o crescimento económico ajude até 2024, não obstante sabermos, por experiência adquirida, de que um crescimento mais elevado pode abrandar ou mesmo adiar a reforma do Estado. O partido-estado não vai desistir assim tão facilmente.

Professor da Universidade do Algarve