Lendo e ouvindo o que se diz por aí, parece que não há lugar para dúvidas: a oposição de Passos Coelho a António Costa é frágil e sem consequência. Pelo menos é o que nos dizem vozes do PSD, vozes do PS e comentadores de vária espécie. Talvez seja verdade. Sofro de uma terrível falta de jeito para avaliar a eficácia das tácticas partidárias e é tarde demais para adquirir alguma sofisticação no capítulo. Mas de três coisas básicas tenho uma certeza absoluta. Primeiro, que foi o PS, versão Sócrates, que conduziu, alegremente e à vista de todos, o país à beira da bancarrota. Segundo, que foi Pedro Passos Coelho, depois de ganhar as eleições, que se dispôs, com uma coragem e um estoicismo difíceis de imaginar, a pôr alguma ordem na coisa pública. Terceiro, que, apesar da flagrante impopularidade de muito do que fez e de vários erros de percurso, conseguiu de novo que o PSD ganhasse as eleições. Que ao PS, versão Costa, tenha sido permitido, com as suas alianças, formar o actual Governo não muda um átomo no que respeita a este último facto. Isto tudo junto despertou em mim admiração pelo homem e desconfiança por relação aos herdeiros de Sócrates. Não creio que os sentimentos sejam incompreensíveis.

Mas, a acreditar em algumas sondagens, o mundo não foi feito para este género de gratidões, uma verdade que certamente não é de agora. E António Costa goza de uma popularidade idêntica à de Sócrates, quando, nas eleições contra Manuela Ferreira Leite, conseguiu formar o seu segundo Governo, numa altura em que as catástrofes que se avizinhavam já eram discerníveis a olho nu. E a propaganda, apesar de várias diferenças, é no essencial a mesma. O país é o país das maravilhas. As dúvidas de Pedro Passos Coelho, tal como as dúvidas da Manuela Ferreira Leite da altura, só podem resultar das piores razões, inclusive das piores razões de carácter. Toda a gente, através da propaganda, ficou a par do racismo e da xenofobia de Passos Coelho e do seu apetite pela “maledicência” (é verdade: Costa ressuscitou a expressão que não saía nunca da boca de Sócrates). Outra característica aparentemente sua é o “cinismo”: o cinismo de alguém, como explica esse pilar do Governo que dá pelo nome de Catarina Martins, que “espera que tudo corra mal ao país”. Um típico traidor, para levar o raciocínio às suas mais imediatas consequências. E um traidor a um país que paulatinamente se vem tornando, graças aos elevados sentimentos da gente do poder e ao seu superior discernimento, num verdadeiro país das maravilhas.

É o que a propaganda não se cansa de repetir. Pela voz, por exemplo, da versão lusitana da recentemente célebre Ri-Chun-hee (a apresentadora televisiva da Coreia do Norte), o nosso conhecido João Galamba, que anuncia cada novo feito de Costa com um aprumo e uma efusividade que nada ficam a dever ao original norte-coreano e que fulmina os adversários com um incontido desprezo que sublinha, como se tal fosse preciso, a natural grandiosidade da sua própria pessoa. Não é certamente o único a praticar o exercício. Há por aí muitos outros generais do sorridente António Costa que dão saltinhos e palminhas a cada novo feito seu. E há a fatal filinha daqueles que se encostam ao poder, qualquer que ele seja, para tratarem da sua vidinha.

O chefe, entretanto, fala também de amor. Em Matosinhos, mencionou a “relação intensa” entre o PS e aquela cidade. “Intensa” apenas? Não: “uma relação de amor”, um amor vivido entre “alegrias” e “arrufos”, como convém às grandes paixões. Porque há mesmo uma indesmentível “paixão”. “E a paixão, naturalmente, dá calor a esta relação e torna-a particularmente emotiva”. Esta utilização pelo chefe de uma tal retórica, com o concomitante desvio relativamente a qualquer discurso racional, não é acidental. Pede-se emoção, amor, paixão. Em suma: reconhecimento do carisma próprio, como diria o outro. É um pouco o elogio do “grupo em fusão” de que falava Sartre, em que os indivíduos se indistinguem numa acção colectiva. A paixão, com um ou outro momento de arrufo, junta-os num corpo único dotado de uma vontade una.

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Felizmente, há também lugar para a extrema sobriedade. Exemplo maior dessa sobriedade é a entrevista concedida no outro dia pelo ministro da Defesa, Azeredo Lopes, ao Diário de Notícias. Sobriedade? A palavra é fraca. Diria antes cepticismo, e dos mais radicais. Não há aí lugar para a paixão, para o amor, ou sequer para as emoções. Apenas uma distância intelectual e altaneira face ao baixo mundo dos factos materiais, cuja realidade efectiva, de resto, é posta em questão. É talvez isso, de resto, que o faz criticar a “lógica sacrificial” própria ao clamor mediático que procura culpas. Não um qualquer medo de ser vítima de uma unanimidade sacrificial em que fosse arbitrariamente escolhido para expiar os pecados da comunidade e restabelecer a boa ordem social, como parece que acontecia em certas tribos primitivas. Não: a objecção é puramente lógica.

Respondendo a perguntas relativas ao patético episódio de Tancos, o ministro da Defesa anuncia que pediu a quem de direito “um varrimento mais inspetivo e menos estático” sobre o estado das instalações militares. É obviamente de aprovar. “Varrimentos estáticos” não suscitam grande confiança. Não é que o material que se diz roubado represente grande perigo: era obsoleto. Ou melhor: não representa grande perigo para a população em geral. Porque o ministro reconhece que para uma certa categoria de entre a população ele é efectivamente perigoso.

Qual categoria? A dos hipotéticos ladrões. Diz-nos o ministro: “Sem querer estar a fazer humor com isso, um civil que queira utilizar um sistema LAW [um sistema de mísseis anti-carro, expressão que o ministro não aprecia, por ser “demasiado espectacular”] obsoleto, arrisca-se a que lhe expluda nas mãos. Arrisca-se, no mínimo, a que esse sistema ou não dispare ou não seja capaz de cumprir com a eficiência que teria se não estivesse, desculpem-me a expressão, fora de prazo”. Eis uma análise puramente técnica que manifesta, entre outras coisas, uma louvável preocupação com o bem-estar dos hipotéticos (repito: hipotéticos) ladrões e até, é lícito imaginar, com a eficácia das suas possíveis acções futuras. Só não se percebe que o tal equipamento estivesse guardado no paiol de Tancos para ser utilizado num curso de formação de sapadores. Não haveria idênticos riscos nesse caso?

Reparar-se-á que escreve “material que se diz roubado” e “hipotéticos ladrões” duas vezes. Não foi por acaso. Foi porque o ministro vê toda a situação com um radical cepticismo. De facto, declara, “não sei se esteve lá [no paiol de Tancos] alguém”. Tudo o que declara conhecer são factos visíveis ou estritamente discursivos. Há “um furo na cerca” e “foi declarado o desaparecimento de material militar”: “o que sei é que material que se encontrava à guarda do exército desapareceu”. Um céptico é prudente e recusa-se a dar o salto do visível para o invisível. Não faz conjecturas: “não estou nem deixo de estar convencido, só sei que desapareceu”. Tenha estado lá alguém ou não, desapareceu. Pode-se ter limitado a desaparecer sem acção humana alguma. Quem somos nós para saber? Apenas nos é concedido o direito a supor uma verosimilhança ou outra: “Tenho de presumir, por bom senso e porque não sou dado a teorias da conspiração, que desapareceu algures antes de 28 de junho quando eu tomei conhecimento”. Suponho que o ministro da Defesa alarga esse sentimento geral à existência do mundo prévia ao seu nascimento: tem de presumir, sem que tal presunção represente uma convicção sólida, que o nosso bom planeta já cá estava antes da memorável data.

Uma tal dose de cepticismo conforta a alma, até porque contrasta com a avassaladora paixão exibida por António Costa ou com o entusiasmo inequivocamente manifestado por João Galamba. O meu único problema é saber como fazer concordar uma atitude intelectual com a outra. A reacção é de perplexidade face à conjunção destes dois extremos, a exaltação heróica e a distância céptica. Por causa desta perplexidade, percebo até muito bem a minha saudade de alguém como Passos Coelho. Que me lembre, nunca caiu num extremo ou noutro e manteve uma razoável coerência no seu discurso e no seu entendimento da realidade. Não por causa do PSD. O PSD produziu ao longo da sua história criaturas tão inenarráveis como qualquer outro partido, embora tenda a pensar que, no conjunto, a sua acção tenha, em média, sido menos nefasta do que a do PS. Não: por causa das características próprias de Passos Coelho. Eu, se fosse do PSD, deixava-o onde está. É melhor do que os outros.