Neste fim de ano que está a chegar, Cavaco Silva, por causa de um livro que acabou de publicar, concedeu uma entrevista ao Observador. E Pedro Passos Coelho participou numa conferência comemorativa dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva fundador do grupo CUF. O que une as duas intervenções não são apenas alguns tópicos comuns (nomeadamente a questão da TAP, que muito legitimamente os preocupa a ambos), mas sobretudo o falar claro e a lucidez dos propósitos. E o que mais surpreende não é tanto essa lucidez partilhada (apesar de tudo, ao longo dos anos, já deram dela muitas provas) como o facto de ela aparecer, no universo político, como vinda de um mundo constituído por pessoas das quais não há equivalente, ou quase, hoje em dia. Pessoas capazes de dizer (e pensar) coisas que hoje em dia só aparecem, aqui e ali, envoltas em miseráveis farrapos de retórica, como a pedirem antecipadamente desculpa por serem ditas.

Cavaco Silva e Passos Coelho são certamente pessoas muito diferentes entre si. Cavaco Silva foi por três vezes primeiro-ministro (duas delas, a segunda e a terceira, com maioria absoluta) e duas vezes Presidente da República, em ambas eleito logo à primeira volta. O ódio que uma boa parte da esquerda (e não só) lhe votou e persistentemente vota não parece incomodá-lo por aí além. Sem entrar em querelas largamente espúrias sobre direita e esquerda, continua a considerar-se social-democrata, na esteira de Eduard Bernstein, uma sua velha referência que em tempos indignou um jovem Paulo Portas. Não li o livro que acabou de publicar e no qual procura explicar a sua concepção da social-democracia, mas não custa, lendo a entrevista e conhecendo declarações suas anteriores, que dois dos seus elementos fundamentais são a colaboração virtuosa entre o público e o privado (na área da saúde, por exemplo) e a manutenção da preocupação e da interrogação sobre o significado da justiça na sociedade. Estas questões continuam a preocupá-lo, tanto na esfera privada como no contexto das suas actividades como ex-presidente, mas afirma taxativamente que não sente saudade alguma dos tempos em que exercia cargos políticos. Tem hoje em dia mais tempo para ler, ver filmes e visitar o “seu Algarve”, como diz. Raras vezes, se alguma, terá dado uma entrevista tão humanamente simpática como esta, e ao mesmo tempo tão explícita sobre o seu pensamento político geral. Sente-se que está bem na pele, e isso é particularmente notório quando defende a sua actuação como primeiro-ministro (nomeadamente a “política do betão”, obviamente necessária na altura), longe da afectação de vaidade em que por uma vez ou outra caía no passado.

A história de Pedro Passos Coelho é sem dúvida diferente. Passos Coelho (que Cavaco elogia de forma conclusiva) chegou ao poder por via das eleições que derrubaram José Sócrates, com o país praticamente mergulhado na bancarrota e com a vinda da troika negociada pelo moribundo governo do PS. Também ele sentiu o imoderado ódio de uma parte significativa da esquerda e de correntes muito vocais no interior da direita, particularmente do seu próprio partido. Mas, tal como Cavaco, e com um estoicismo e uma calma olímpica que não é nunca demais sublinhar, sem por um instante ceder a qualquer espécie de cólera, aguentou os insultos diários, as ameaças pouco veladas e tudo o mais e perseverou no seu desígnio. E tanto perseverou que conseguiu obter a célebre “saída limpa” para Portugal, deixando o país numa trajectória de crescimento económico e vencendo novas eleições – que, como se sabe, foram objecto de uma manobra de António Costa que, aliado ao PC e ao Bloco, formou a “geringonça” que nos caiu em cima. Acresce a isto que foi formidavelmente púdico e discreto nas tragédias pessoais que o acompanharam, o que ajuda a tornar perceptível a natureza do seu carácter. Não sou adivinho e portanto ignoro qual o “capital político” de que Pedro Passos Coelho dispõe, se porventura pensar em voltar à política activa. Mas aposto que será muito. As pessoas guardam dele a imagem da honestidade e da devoção à coisa pública, ambas magnificadas pelos tristes espectáculos que presentemente nos rodeiam.

O que une Cavaco Silva e Passos Coelho, particularmente nestes tempos politicamente lúgubres que vivemos, é eles possuírem os dois uma visão das coisas portuguesas a milhas da irresponsabilidade e da falta de sentido do dever que é um traço comum ao grosso das crianças sem graça que presentemente nos pastoreiam. Basta ver o que nos dizem da TAP – “Não vejo o Estado a gerir uma empresa que tem concorrência internacional”, lembra Cavaco -, da não-recondução de Joana Marques Vidal e de Vítor Caldeira para os cargos que anteriormente ocupavam, da “superior dificuldade em admitir as falhas graves incorridas” no caso do cidadão ucraniano Ihor Homenyuuk (Passos Coelho), e por aí adiante.

Face a isto, as costumeiras polémicas sobre a esquerda e a direita (inclusive no que respeita às eleições presidenciais) produzem sobretudo o efeito de um espectáculo regressivo. O que se sente antes de mais é uma espécie de tédio indisfarçável face às pueris conversas de crianças envelhecidas, ignorantes do que é a liberdade e carinhosamente servidas à mesa por um cozinheiro habilidoso e dado ao entretenimento. Se tudo isto não é uma vil e declarada decadência – então, francamente, eu não sei o que é a decadência.

O tempo não volta para trás, é claro. Mas, apesar de tudo, pode-se criar de novo. E por estes dias de Natal seria verdadeiramente uma bela prenda a esperança de voltar a ver Pedro Passos Coelho de retorno à política activa. Nunca votei “por protesto”, e estou velho demais para começar agora. Mas votei muitas vezes “contra” certas soluções que os partidos vendiam. Apenas duas vezes, que me lembre, votei declaradamente “por” um candidato ou um partido. Poderia ser uma terceira. Precisamos desesperadamente de um adulto na sala.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR