A contestação do património parte do pressuposto de que nele se verifica uma glorificação injusta do passado, que prossegue e explica o presente e serve de exemplo a um futuro indesejável. Trata-se assim de repor o passado como ele foi, fazendo um apelo inútil à revisão da história. Inútil porque faz parte de qualquer disciplina científica pôr-se à prova numa comunidade de investigação. A história não é excepção; as metamorfoses por que passou justificam que se torne objecto de si mesma. A «história da história» já ganhou foros de cidade e constituiu-se como domínio científico de pleno direito.
Neste sentido e à primeira vista, a revisão da história é uma mera questão de epistemologia, ficando por conta da respectiva guilda o necessário trabalho braçal. Na realidade as coisas não se passam assim, e as consequências não se fazem esperar. O recurso à ciência em nome de interesses políticos contraria as intenções de quem quer anular a política por essa via, dado que o processo de correcção e aprendizagem constitutivo da ciência se alastra fatalmente à explicação do presente e à antecipação do futuro. Por isso, não se trata tanto de uma injunção à revisão da história, mas antes de uma chamada a capítulo dos historiadores: cabe-lhes determinar o passado para avaliar o presente e fixar o futuro. Não é um apelo científico, mas político. Não por acaso, goza de uma ampla publicidade como nenhuma questão estritamente histórica. Com tal revisão o que se pretende é naturalizar uma interpretação e instituir um continuum histórico; a última cena da história seria o seu fim, e os historiadores seriam os seus coveiros. Trata-se de uma visão que, ainda assim, abrange a comunidade como um todo. No plano horizontal, não institui diferenças de natureza entre os seus membros. Pressupõe uma diferença intelectual, de que subjectivamente não se apercebe, vertical, maniqueísta entre o mandarinato e o vulgo – uns sabem, outros não.
A mais recente iconoclastia move-se já noutro âmbito. Cumpre agora entender a destruição como acto cultural positivo na medida em que lhe acrescenta um valor novo: trata-se de libertar as minorias especialmente oprimidas do estigma da lembrança e da memória, aliviar-lhes o sofrimento presente pelo processo doloroso que outros – que não eles – viveram. Sabendo bem que o passado não pode ser desfeito, resta aos novos iconoclastas anulá-lo, suprimindo os seus vestígios, na esperança de uma inocência reconquistada. Mas desse modo deitam foram o bebé com a água do banho. Sem a memória do sofrimento desaparece o motor da crítica e da exigência de reconhecimento, do lado dos oprimidos; desaparece também a gratidão, amarga mas gratidão, por parte dos opressores, que somente pode ter origem no confronto e na acusação levantada pelo outro. Sem a memória do sofrimento, o que era comum jaz em pedaços, as histórias que fazem a história passam a membra disjecta sem vida: mera natureza. A miragem edénica redunda na reificação que todo o esquecimento acarreta; as Musas, recorde-se, são filhas da Memória. Aliás, o problema formulado exclusivamente em termos de sofrimento significa esbulhar essas minorias da capacidade racional de lhe fazer jus. Na esteira de uma menorização que vem de longe: sentem, mas não pensam. Incapazes de conduzirem a sua vida, sucumbindo a estímulos sentimentais, será um alívio para eles e será para o seu bem que outros tomarão em mãos a sua existência. Mas a perversidade não se fica por aqui. Para eliminar qualquer tensão, causa de sofrimento, que o fosso entre estádios de desenvolvimento provoca, denuncia-se a razão ou a ciência como produtos ocidentais ou até «brancos» – não se anda muito longe da «física judaica» ou da «genética burguesa». É fazer do sambenito glória. As massas miseráveis que se fiquem pelas sabedorias «locais» e «do Sul», afinal vivem no Paraíso e não sabem; já aos que se pretendem seus advogados incumbe-lhes o doloroso dever de se deslocarem nos aviões que a ciência «branca» produziu, anunciando a boa nova de universidade em universidade. Há paternalismos menos fundamentados.
A beatitude opiácea, sem passado nem futuro, não possui virtudes salvíficas. Bem pelo contrário. A coberto de boas intenções, essas minorias são reduzidas a um presente sem fim e expulsas da história. Na hipótese da reciprocidade, que não é a pior, a cidade futura será habitada por animais isolados, sem comunicação, e as relações entre grupos reger-se-ão por uma política zoológica. Transpõe-se para o mundo humano a sombria moral do Patinho Feio: cada qual com seu igual. A tese é conhecida. É também a de todos os que se dizem não racistas mas racialistas. Num acto de contrabando hermenêutico, renuncia-se à pluralidade de perspectivas internas de cada grupo, que formam a base contingente de todos os encontros e desencontros históricos, e postula-se um observador exterior, supra-histórico, também ele assim naturalizado. Por outros palavras, o problema da história resolve-se pela sua abolição tautológica: se não houvesse história, não havia história.
Se a pretensão iconoclasta se unilateralizar radicalizando um privilégio martirológico, o resultado é ainda mais grave, uma vez que transforma exclusivamente essas minorias em matéria inerte, sem finalidades nem interesses próprios, que a nada dão valor, e por isso nada perdem, nada ganham, nada são – nenhum esclavagista pediria mais. A assimilação mimética à natureza não tem sequer a justificação, mais do que atendível noutros contextos, de constituir um reflexo de defesa; transformada num programa, recai no exacto oposto do que almejava: em vez de todos os seres humanos acederem à humanidade, grupos há que são relegados sem apelação para a natureza.
Prosseguindo uma alucinação de auto-suficiência, é trazido ao mercado outro figurino de depuração patrimonial a pugnar pelo solipsismo racial. Uma escola secundária de Edimburgo (James Gillespie’s High School) retirou do currículo o estudo do romance de Harper Lee, Não Matem a Cotovia, por promover a narrativa do «white saviour». O vocabulário religioso é sintomático, mas enganador. Pretende, à imagem e semelhança das mitologias arcaicas, fundar a imanência do grupo e do seu fundamento – uma unidade que existe sem começo nem fim, fora da história, mónada sem portas nem janelas, que nada expressa. Só que o salvador que estilhaça o circuito fechado mítico não é o herói fundador em simbiose com a tribo, a vaguear na plenitude de uma solidão feliz; vem de fora. Contra o mito, onde o início nem se deixa pensar, na religião há um começo sempre diferido e nunca suficiente – Moisés foi criado no Egipto. Julgando-se atrevida, a trouvaille do «salvador branco», que pretenderia talvez evidenciar a necessidade de uma minoria se tornar activa e se constituir como sujeito histórico, capitula e regride à natureza e à passividade mítica, ao alcandorar a raça a critério do juízo – o salvador é recusado porque é branco; a salvação será racial, ou não será.
A montante e a jusante, a destruição e depuração patrimoniais, se tomadas como acto cultural positivo, resultam na naturalização da história; a erosão da comunicabilidade cultural de princípio leva, sem dúvida, ao desvanecimento do homem, como à beira do mar um rosto de areia.