A nova iconoclastia pretende instaurar em terra firme uma história sem história. O pressuposto essencial de uma tal concepção não é novo. Bem pelo contrário. Resume-se numa frase: a memória causa sofrimento. Assim armado, quem sofre tem o direito de destruir a memória. Tudo se passa – de princípio – com a boa consciência terapêutica de um médico à cabeceira do doente: uma vez que o diagnóstico está feito, cumpre aliviar o sofrimento e, se possível, suprimi-lo. Para tal impõe-se rasurar a história, destruindo os artefactos culturais da memória. Essa é a nova luta, que, aliás, só ganha pertinência precisamente depois de conquistada a igualdade jurídica e alcançada uma certa igualdade de condição económica, profissional, social, hábitos comuns, etc.

O cardápio é conhecido: destruir, remover ou vandalizar estátuas, pinturas, edifícios; reescrever e censurar a história num sentido unilateral e pré-determinado, em vez de a deixar entregue às normas científicas que constituem um domínio disciplinar, ou policiar a linguagem – objecto fóbico ímpar. Os novos iconoclastas são como que detectives à rebours, a sua tarefa consiste em procurar pistas, averiguar indícios ou interrogar testemunhas não com o intuito de apurar a verdade e assim poderem fazer um juízo informado, objectivamente fundado, adulto, mas antes com o fito de destruírem as pistas, distorcerem os indícios ou silenciarem as testemunhas. O passado será o que o presente – muito narcisicamente – quiser. Sem resistências nem obstáculos, sem uma referência objectiva que não dependa do fiat da respectiva voluntas, acreditam ter recuperado a inocência de que foram injustamente esbulhados. Por um lado, postulam desse modo a existência reificada e não histórica de uma dada identidade, ignorando, ou fingindo ignorar, que o aparecimento de novas identidades é inevitável. Por outro, ao terraplanarem o passado, negam às identidades futuras possibilidades patrimoniais de compreensão histórica, entronizando-se assim como juízes últimos da história. O banho lustral de moralidade revela o mais brutal egoísmo, a característica por excelência da psicopatologia do tirano: é a medida de todas as coisas.

A par do vandalismo programado, que têm por elemento negativo de efeitos benéficos, algumas das novas lutas identitárias propõem novas obras, novas histórias, novas palavras. Posto que se compreendem como lutas, voltam-se par la nature des chosescontra quem consideram os responsáveis do passado. Os opressores, os violentos, os discriminadores, – e quem deles beneficiou – da escravatura à masculinidade tóxica, da heteronormatividade ao especismo, todos eles terão de ser expostos, denunciados, acusados. A arte aponta e materializa as feridas, amplia a indignação e a nenhuma injustiça dá tréguas, com um só objectivo: que nenhum culpado fique inulto. Em tudo isso, a arte e o activismo entregam-se ao que antes pretenderam eliminar: a memória. Assim, suprimir a recordação das injustiças do mundo só tem sentido porque elas são históricas, aconteceram, e a acusação – as feridas – implica necessariamente a conservação do passado que deve ser abolido. Trata-se de um double bind: uma contradição insanável de duas injunções. Mas neste caso não existe uma ilusão de alternativas, nem um terceiro que dá ordens contraditórias. Trata-se antes de acomodar no interior de cada sujeito exigências mutuamente exclusivas, mas que operam em circuito fechado. O acto deliberado de esquecer é sempre uma memória e, por isso, deita sal nas feridas, reavivando o sofrimento; tal como o acto justiceiro nunca se poderá bastar do ponto de vista terapêutico, dado que não se realiza sem a memória – para se alcançar o pretendido exige-se o esquecimento não disto ou daquilo, mas da própria necessidade de esquecer.

Como se uma não bastasse, esta síndrome abarca outras contradições. Os protestos com tanta ênfase lavrados não implicam qualquer risco pessoal, decorrem o mais das vezes num ambiente seguro e acolhedor, proporcionando até carreiras economicamente lucrativas e culturalmente reconhecidas, como sucede, por exemplo, em tantos museus, centros culturais ou fundações no mundo ocidental. Tais artistas não ousam enfrentar as condições reais dos problemas de que se ocupam artisticamente, fazendo valer as suas raízes, onde é possível retirar benefícios, calam-se onde muitas vezes reinam condições desumanas, sem qualquer comparação com os países onde vivem e trabalham. Muita da mediocridade e monotonia artística de cunho identitário não provém de uma limitação subjectiva, é sim causada objectivamente pelas relações de produção. É um ganha-pão; de resto, così fan tutte. Tal sucede precisamente porque aos profissionais da indignação respondem os profissionais do remorso do homem branco, sempre prontos a estender a mão. Com condições. À imagem de tantos antropólogos e dos cultores sofisticados do exotismo, esta classe profissional é rebelde e revoltada em casa de seus pais, conformista e servil em todas as outras; postulam tacitamente uma harmonia pré-estabelecida entre as demais culturas e, retumbantes, um mal radical apenas na sua. A falsidade de uma tal posição não deixa de ser compreendida, ou, pelo menos, mais ou menos vagamente sentida. Trata-se de uma esquizofrenia cuja origem é o entendimento erróneo que isola os factores históricos no pressuposto de que lhes pode dar resposta um a um. Mas isso é precisamente destruir a trama da história, não por acidente mas na sua essência. Uma vez realizada essa segregação, cada qual pode despedir-se à la carte da história que constituiu essas identidades como tais – imitando as crianças, escolherá apenas do que gosta. É o bilhete de entrada na dimensão da consciência sem história. Contra o sofrimento, uma tal consciência permite alcançar numa sobre-exigência e numa compensação delirante um estatuto de omnipotência, de pureza nunca maculada pela história, a que nutrem um horror sagrado. Dispensam-se assim do esforço de compreenderem e, no mesmo movimento, de se compreenderem a si mesmos – de tudo o que constitui a fons etorigo da arte e do património – e, para restaurarem imaginariamente a unidade do ego, entregam-se a um cogito duplamente satânico: o Eu odeio e odeio-me por isso deve poder acompanhar todas as minhas representações.

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