As almas inocentes — ou distraídas — que ainda acham que não há partidos populistas em Portugal deviam perder alguns minutos a ler a entrevista que o cabeça de lista do PCP às europeias deu ao Eco. João Ferreira fala de forma cândida, como se estivesse a debitar platitudes — e, de facto, ninguém se espantou ou chocou com aquilo que o eurodeputado comunista defendeu. Mas deviam: está lá o abêcê da cartilha dos piores populismos que ameaçam a sanidade dos sistemas democráticos nos Estados Unidos, no Brasil e em parte significativa da Europa.

Em primeiro lugar, temos o nacionalismo económico. Para o PCP, cada um dos Estados que estão aprisionados na União Europeia deve reclamar “plena soberania em relação à definição das políticas económicas, monetárias, orçamentais e comerciais”. A expressão “plena soberania” soa bem mas é, na realidade, uma perigosa fantasia. Como sabem todos os adultos, qualquer país que queira fazer parte da globalização — ou seja, que queira fazer parte do mundo civilizado — tem de abdicar de alguma soberania: entre a sua “plena soberania” e a “plena soberania” dos restantes países há um meio termo a que uns chamam negociação, outros chamam diplomacia e todos chamam bom senso. Portugal não tem “plena soberania em relação à definição das políticas económicas, monetárias, orçamentais e comerciais”? Claro que não. Mas adivinhem: a Alemanha também não. Nem França. Nem, já agora, o Reino Unido — com Brexit ou sem Brexit. Talvez as circunstâncias particulares destes países irremediavelmente capitalistas não comovam os comunistas, mas podemos, em vez deles, usar um exemplo que qualquer membro do comité central do PCP entende sem dificuldade: a Coreia do Norte. O exemplar regime dos Kim também não tem “plena soberania em relação à definição das políticas económicas, monetárias, orçamentais e comerciais” — a proximidade com a China, entre muitas outras realidades inescapáveis da vida, obriga a Coreia do Norte a dialogar e a ceder, sem presumir que os seus caprichos e os seus desejos são o começo e o fim da política.

Este nacionalismo económico do PCP leva, claro, ao isolacionismo, como Trump ou Steve Bannon poderiam explicar aos ideólogos comunistas. João Ferreira não tem medo nenhum disso. Pelo contrário: nas suas palavras sente-se a atração pelo choque contra uma parede em nome da virtude ideológica. Na entrevista, o eurodeputado comunista enche o peito e, transpirando aquela coragem patriótica que acaba sempre em miséria económica, declara que Portugal “não deve ter problemas em ficar isolado sempre que isso corresponda à defesa de um interesse vital”. Querem saber onde é que esta retórica do “interesse vital” acaba sempre? Então peguem em qualquer livro sobre os horrores do século XX.

Como todos os partidos populistas, o PCP adora dividir o mundo entre “nós” e “eles”, sendo que “nós” somos os puros e os perseguidos, enquanto “eles” são os malvados e os opressores. Para os comunistas, a história da União Europeia é tão simples como a da Carochinha: as elites de Bruxelas recorrem à “ameaça”, à “pressão” e à “chantagem” para, com os olhos fixos nas nossas carótidas e os caninos em sangue, imporem aos pobres portugueses, por puro sadismo, a reversão da santa “devolução de direitos e de rendimentos” .

Estando os portugueses rodeados de tantos inimigos na União Europeia, sobra a solução da “ruptura”. É, aliás, sempre assim que acaba o nacionalismo económico, o isolacionismo e a mentalidade de cerco que une populistas de extrema-esquerda e de extrema-direita. “Une” é, de resto, a palavra correcta. Quando o jornalista do Eco pergunta a João Ferreira se não teme que as posições do PCP levassem Portugal a uma aproximação a “um governo populista e nacionalista como o italiano”, o eurodeputado comunista nem pestaneja. Na resposta ainda se socorre de Emmanuel Macron mas, no final, explica que não há qualquer dilema ético numa aproximação a Matteo Salvini. Seria feito o que fosse preciso: “Portugal deve sempre que possível procurar alianças e uma articulação com outros países com interesses convergentes. Independentemente dos governos em questão”. Vou repetir e sublinhar: “Independentemente dos governos em questão”. Acho que ficamos todos definitivamente esclarecidos.

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