para o João Miguel, contador de histórias, arqueiro da esperança
E eis que, ao 7º dia, Pedro Nuno, o Soberbo – cônscio do seu valor mas não do do Salário Mínimo nem do de um bilhete de comboio – devidamente alertado pela sua corte de assessores, anuiu a brevíssima catábase e consentiu conviver com o povaréu e seus hábitos: sentado à roda da caçarola, catou bagulho e escolheu os meninos que, prestando vassalagem e prometendo fazerem para sempre parte da sua equipa no jogo das Escondidas e do Mata, terão autorização para, a partir de Março, no recreio do Jardim Infantil, folgar com os seus brinquedos.
Apesar dos esforçados gestos de larga magnanimidade e dos avisos do seu cortejo de eunucos, Pedro Nuno passeou-se por entre torneios de chinquilho, sandes de courato, farturas e bifanas de Vendas Novas com indisfarçável fastio – a ruindade do cheiro a óleo e a povo entranha-se de tal modo em fatinhos de fino corte e camisolas de gola alta que ele pressente já o sono interrompido pelas sonoras protestações da senhora da 5àSec alertando “a Catarina” para os inconvenientes do contubérnio, mesmo que apressado, com esse tal do povo: mãos gordurosas, palmadas nos costados e o segredo comungado de as palavras serem a nossa antiga, sóbria e humílima vigília à cabeceira de um mundo que por vezes compreendemos apenas em diferido.
Nesse mundo – o mundo de Homero, no fundo – um homem usava palavras apenas para dar expressão a um pensamento que, longamente ponderado, lograra alcançar; ou então para apresentar um argumento, uma censura, ou para dar graças. Pedro Nuno, por seu turno, julgando tê-las seduzido com a velha moeda da vergonha e do esquecimento, exaspera-se quando, ao invés dos seus fabulosos domínios, elas denunciam a inutilidade de todas as suas urgências.
Conhecesse ele o mundo dos poemas homéricos – um mundo governado por convenções a que nem Príamo, na sua dor, nem Aquiles (cujas febris idas e vindas diante das muralhas denunciam a sua interminável e inútil ira) sabem como escapar – e talvez lograsse entrever, acima das convenções, aquela subtil sugestão da possibilidade de nem tudo estar predeterminado; de por vezes as coisas serem como são; de neste mundo, porventura também sujeito ao acaso, as coisas nem sempre serem como deveriam ser por simplesmente acabarem por serem do jeito que são.
É num desses momentos que Príamo tem a ideia de procurar Aquiles não enquanto rei, mas como pai, assumindo o vínculo mais leve de ser simplesmente um homem; suspeita ele, e com razão, que Aquiles ficará igualmente feliz por se libertar da obrigação de ser sempre um herói. Num delicioso aparte, Príamo interroga-se se não será este alijamento das convenções o verdadeiro resgate que ele poderá oferecer a Aquiles pelo corpo do seu filho.
Se a Ilíada, atravessando uma guerra, teima em mostrar-nos corpos de homens – no frenesim da acção e na estranha serenidade da morte – e luta ofegantemente com os valores que levam esses homens a agir e a morrer, a Odisseia, situada no rescaldo da guerra, pode ser descrita como um poema sobre o espírito – uma celebração das qualidades intelectuais e verbais de que talvez precisemos para sobreviver naquele mundo que, em desconforto, regressa aos esquecidos hábitos da paz.
Uma qualidade espiritual que a Odisseia admira extravagantemente é a capacidade para contar uma boa história. (Se a história é verdadeira ou falsa é uma questão que atribula este poema, que de variadas maneiras se preocupa com aquilo que é, no fundo, uma questão filosófica: como é que se pode saber se algo é verdadeiro – a história que nos é contada por um completo estranho, os protestos de uma esposa que afirma a sua fidelidade.) Por vezes, é fácil esquecermos que quase todas as famosas aventuras que associamos a Ulisses (os Ciclopes, Calipso, Cila e Caríbdis, os Lotófagos) – nos são narradas não pelo narrador invisível do poema, aquele “eu” que invoca a Musa no primeiro verso, mas pelo próprio Ulisses acerca si mesmo. A certa altura da sua viagem, ele arriba a uma ilha habitada por refinados nativos e amantes do prazer, os Feaces, e, uma noite, ao jantar, conta-lhes a história do seu regresso até àquele momento, algo que ocupa quatro livros inteiros do poema de Homero.
Quase poderíamos dizer que grande parte da Odisseia é uma espécie de performance épica dentro de uma epopeia, uma longa analepse em que o poeta e o herói são a mesma pessoa. (Não será talvez coincidência que tanto os bardos como os arqueiros – e que renomado arqueiro é Ulisses! – precisem de um instrumento de cordas para alcançar as suas proezas). A narrativa épica anseia por dar descanso às palavras para que não encontra proveito nem uso fora desta solidão que nos impõe sempre que trocamos as nossas mútuas ausências pelo atrevimento de ruinosas esperanças.
As Histórias, por exemplo, começam com uma narrativa, à laia de fábula, ilustrativa dos perigos da autofagia imperialista: a história de Creso, aquele obscenamente rico rei da Lídia, “o primeiro bárbaro”, diz Heródoto, “a subjugar e a exigir tributo de alguns Helenos” e que, helás!, acabou também ele subjugado, cego pelo seu sucesso, aos perigos que o rodeavam. Antes da grande batalha que lhe custou o reino, tinha arrogantemente interpretado mal um pronunciamento do oráculo de Delfos que deveria ter sido um aviso: “Se atacares a Pérsia, destruirás um grande império”. E realmente destruiu – o seu próprio.
Pedro Nuno, cuja afeição por cordas em tensão é desconhecida, não sabe que as ruínas são antigos locais de permanência e plenitude e por isso não é fácil ter de nelas acoitar o nosso erro, a nossa efemeridade sem revolta, pois é sobre inevitáveis ruínas também que se constrói a consciência dolorida do corpo e do tempo.
Como dizia um heterodoxo engenheiro naval muito cá de casa, estar calado é a melhor maneira de ter razão. Deve ser por isso que Pedro Nuno fala, digamos, tão bem.