São muitas as situações capazes de nos recordar o implacável giro do timão da fortuna e a irónica obstinação com que os Fados teimam anunciar os seus caprichos em momentos imponderáveis. Mas talvez nenhuma o faça como um debate: sabemos pela experiência que é nas altercações mais afogueadas que normalmente se descobre o detalhe ocultado com esmero – o debrum rosado da trousse que espreita, marota, sob o viril cós de um macho, a voz subitamente lacrimejante de um colosso que afinal não tem peito para o Bolhão – e que, mais por prudência do que por cobardia, devemos entrar nesse tipo de confronto com pés serenos mas ligeiros.

Acontece que esta meridiana sensatez não frequenta os artelhos de um político – peculiar espécimen arborícola que, inebriado com o bipedismo recentemente adquirido, corre para os braços de semelhantes situações naquele alegre tropel com que a bíblica vara de porcos se precipitou no mar.

Foi precisamente durante um debate que acabámos por topar com a Escola Internacional dos filhos de Rui Tavares e o apartamento da avó Mortágua – tudo isto dispensando a investigação de um sindicato de jornalismo internacional: levados pela pesporrência e pela superioridade, escorregaram na proverbial casca de banana que os próprios ali depositaram enquanto, com a típica soberba de um orador motivacional, se preparavam para instruir a cafraria na verdadeira técnica de descascar uma banana. E embora esses momentos sejam quase inevitáveis, é curioso perceber como, ano após ano, os suspeitos do costume são incapazes de resistir a algo para que a literatura nos alerta desde Homero: o perigoso e inebriado deslumbramento com o escasso e canhestro perímetro do nosso próprio ego.

Zeus decidira há já muito que Troia tinha de cair e que a Ulisses seria consentido o regresso. Mas há sempre algum espaço para que, nos dez anos que decorrem antes que qualquer um destes destinos se possa cumprir, a balança penda para um lado ou para o outro: não há nunca, nos poemas homéricos, a mais remota sugestão de os deuses “gregos” nutrirem particular afeição pelos aqueus por serem gregos; não há, na Ilíada ou na Odisseia, nada que se compare ao “povo eleito” das escrituras hebraicas – e que Marx, como bom judeu que era, resgatou para a retórica política, sobretudo de esquerda.

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Isso e o que Frye chamava “touchstone of abnormality”: aquela patológica munificência com que um político justifica como normal uma opção pessoal absolutamente incompatível com o que publicamente defende. Acontece que a “normalidade”, como o crítico canadiano demonstrou, à farta melena do velho Karl, prefere os pregos ferrugentos de Virgina Woolf.

No início de Mrs. Dalloway, está um belo dia de Junho numa grande cidade, e uma mulher de meia-idade, Clarissa, quer comprar flores. Vai dar uma festa naquela noite e, ao dirigir-se para a florista, o seu espírito é atropelado por uma série de pensamentos. Nem todos sobre a sua festa. Atribula-a, por exemplo, que a sua linda filha adolescente seja prisioneira de uma mulher de meia-idade e sem humor que é a modos que a sua – de Clarissa – pior inimiga. (As agressivas opiniões daquela mulher fazem com que Clarissa, comparando-se com ela, se sinta ligeiramente miserável; e de facto Clarissa tem a sensação de ser, no final das contas, bastante “normal”.) Teme o embaraço de se cruzar com alguém que não tenha convidado; sonha com um verão de há muito numa casa de campo, quando ela e uns amigos cederam a uns prazeres ilícitos. (Enquanto este pensamento a assaltava, um vizinho deita-lhe um olhar furtivo e julga a sua aparência com severidade, mas não de maneira indelicada: ela envelheceu.) Pensa, muitas vezes, na morte. Enquanto compra as flores, sente-se uma agitação lá fora e, quando Clarissa e a florista espreitam pela montra, vislumbram uma cabeça famosa emergindo de um veículo, alguém que toda a gente conhece dos jornais.

A famosa cabeça, avistada ao longe por multidões curiosas e lascivas, foi ali colocada para estabelecer um contraste: recorda-nos o grande mundo exterior e os valores pelos quais se rege – a fama, a importância, o poder, a posição, a distinção – e, portanto, contrasta fortemente com a cabeça de Clarissa, repleta de uma confusão quotidiana e aleatória de pensamentos sem qualquer relevância para ninguém senão para ela mesma. A vida de Clarissa pretende, de facto, ser uma daquelas existências, nem brilhantes nem trágicas, que levaram Virginia Woolf, em A Room of One’s Own, a vislumbrar o tema e o estilo adequados a uma autêntica narração: parte do ofício da escrita consistiria em recuperar para a literatura “essas vidas infinitamente obscuras [que] exigem ainda registo”.

Uma forma de o fazer era, de facto, concentrar-se nas minudências concretas da existência quotidiana das mulheres e iluminar a sua própria alma com as suas profundezas e as suas águas rasas, as suas vaidades e generosidades, e dizer o significado da beleza. Aquilo que a literatura anterior rejeitara como “normalidade” deveria agora ser recuperado e forjado num novo tipo de literatura: “Há uma miúda atrás do balcão”, escreveu ela no final de A Room of One’s Own. “Eu preferiria muito mais a sua verdadeira história à centésima quinquagésima vida de Napoleão ou o septuagésimo estudo sobre Milton.”

Donde Clarissa, com os seus pensamentos aleatórios sobre flores e festas e costura e antigos casos de amor: ela é (apesar de todas as diferenças de status) aquela miúda atrás do balcão que é esmagada – ela e a implacável doçura do seu quotidiano – sob as famosas cabeças dos Napoleões e Miltons deste mundo.

O drama de Mortágua e de Rui Tavares reside na reivindicação permanente do papel de pitonisas das minudências triviais da existência dos espoliados, sem abdicarem daquelas enormes cabeças de marechal de campo em Austerlitz com que se passeiam pelos debates. Algo que, suspeito, não deixará de providenciar abundantes cascas de banana até ao final da campanha.