Belarmino Fragoso nasceu na Mouraria, em Lisboa, formou-se a engraxar sapatos, tornou-se famoso no boxe. Não sabia ler nem escrever. Em Espanha, foi recebido como um ídolo e procurado por uma multidão de gente em busca de autógrafos. Belarmino era analfabeto: desculpou-se com uma mão aleijada, pediu que assinassem por ele. Foi campeão nacional, combateu no estrangeiro, acabou enganado pelo agente. Voltou às ruas de Lisboa, sem saber o que fazer, depois de perder a licença de pugilista e de engraxador. Fernando Lopes conheceu-o à porta da Ribadouro, onde entretanto arranjara emprego como segurança, e fez dele um personagem de cinema. Para a história ficará, se ficar alguma coisa, «um talento que se perdeu», como tantos outros. Na antestreia do filme de Fernando Lopes, o Diário de Lisboa anunciava: «Belarmino, o filme que revela ser urgente respeitar todos os homens.»

Belarmino era, afinal, aquilo que somos quase todos: alguém que podia ter sido, mas não foi. Tinha, aparentemente, um talento, ao contrário do que acontece com a maioria de nós, mas foi, acima de tudo, um homem normal, perfeitamente banal como todos os homens. Mas o retrato de Belarmino feito por Fernando Lopes é também o retrato de um tempo em que se podia ser apenas o que se é, sem que houvesse uma necessidade permanente e universal de parecer o que não se é, de procurar talentos escondidos e de alcançar a felicidade (cada vez mais elevada a política pública), de dizer o que se espera que se diga, de agir como se espera que se aja, enfim, sem que houvesse um imperativo social que obriga a uma certa aparência da perfeição que a sociedade viciada em espectáculo exige. O retrato do pugilista falhado, que nos lembra que é urgente respeitar todos os homens, é também uma memória que honra a banalidade e o fracasso, duas virtudes desvalorizadas na sociedade em que os psicólogos falam dos perigos da «positividade tóxica» e que é, como sempre foi, apenas uma sociedade de homens comuns, banais e que fracassam, como é próprio da natureza humana.

Há tempos, Mariana Cabral (ou a mais conhecida “Bumba na Fofinha”) lançou um podcast chamado Reset, «um podcast sobre o fracasso», como a própria descreve. A fórmula não é nova, trata-se de um conjunto de entrevistas, mas leva os entrevistados, figuras conhecidas do País inteiro, a falar sobre os seus fracassos, as suas falhas, os momentos em que foram vulgares e triviais. Ali, por exemplo, Ricardo Araújo Pereira diz «eu na verdade não sei fazer nada»; Carolina Deslandes que não se acha «muito boa cantora»; Rui Maria Pêgo afirma-se «rancoroso por natureza»; e Salvador Sobral explica a razão pela qual tanta gente o considera imprevisível: «As pessoas naquela altura estavam à espera de um modelo, de um gajo exemplar, “ai, estou tão feliz por estar aqui, tão feliz por representar o meu País”, e depois perceberam que não, que eu digo as coisas que penso. E isso é uma loucura, o que é isso de um famoso dizer as coisas que pensa? Não, tem de dizer as coisas que as outras pessoas pensam.»

Esta apologia, em contra-corrente, do fracasso é relevante enquanto parte de um processo de desejável aceitação da normalidade. Ou, como afirmava o Selvagem, no Admirável Mundo Novo, reforça a importância de reclamar o direito a ser infeliz, a ficar velho, feio e impotente, o direito a ter sífilis e cancro, no direito a ter piolhos, enquanto fórmula essencial a viver em liberdade: aceitando os riscos, a natureza e as nossas próprias incapacidades e imperfeições.

Politicamente, o elogio da normalidade e do defeito faz-nos falta, numa fase em que a vida íntima daqueles que se dedicam à política se tornou praticamente parte da esfera pública, depois de anos em que tantos políticos passaram a abrir as portas de sua casa, mostrando a sua felicidade conjugal, a perfeição da sua prole, o jeito que têm para os cozinhados. As pessoas querem saber disso, é preciso humanizar os políticos, dirão especialistas em comunicação e marketing político. Eu disso sei, na verdade, muito pouco ou mesmo nada, mas estou pouco interessado, para efeitos políticos, no alegado facto de as pessoas quererem saber da vida de um político como se se tratasse de um concorrente de um reality show. Como me interessa muito pouco saber se um candidato não fuma e não bebe, se pratica desporto, se tem um estilo de vida saudável, se as suas crianças sabem sorrir e agradecer, se coloca primeiro o alho ou a cebola no refogado, se namora com A ou B. Não há nada que humanize mais um político que dar-lhe liberdade para proteger a sua vida íntima, se assim o entender, e aceitar as suas falhas enquanto ser humano. Fala-se tanto em direitos e ninguém exige o direito a ser imperfeito. Talvez este texto venha fora de tempo, mas não creio que a luta pelo direito ao fracasso esteja ganha. Que me perdoe o leitor.

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