Estou no consultório, no 12º andar de um dos edifícios emblemáticos da cidade, construído no final dos anos sessenta, controverso como tudo o que um dia foi novo, criticado e amado pelos lisboetas em igual proporção. As janelas originais, de perfis de alumínio, sem vidro duplo, há muito ineficazes contra o ruído constante do trânsito, estão agora abertas durante todo o dia – normas COVID. O nervosismo das sirenes, das buzinadelas, das campainhas das bicicletas, das desavenças entre condutores, invade o espaço.
Desde há umas semanas, não sei quantas, às quartas-feiras, a meio da manhã, um grupo de talvez dez manifestantes monta um altifalante de onde sai música de intervenção quase tão velha quanto este prédio. No intervalo das músicas gritam palavras de ordem contra os despedimentos da Altice. Da minha janela aberta, ouço-os, sem perceber as palavras que dizem. Pergunto a outras pessoas sobre o protesto – ninguém sabe do que estou a falar. Comove-me o esforço daquele grupo. Comove-me a sua quase invisibilidade. No actual centro financeiro de Lisboa, título que promove mais a especulação imobiliária do que a saúde económica, ninguém quer saber.
São cinco da tarde. Tenho uma hora para pensar no que farei para o jantar, para fazer as compras, para atravessar a cidade, para ir buscar o meu filho à escola. Entro no trânsito. Há muito que não dou atenção às buzinadelas dos táxis assim que o semáforo muda, nem respondo às provocações habituais de um estilo de automobilistas que escolho ignorar. Sigo o meu percurso dirigida pelo Waze, faço a lista de compras para o jantar, para os quatro de sempre: para mim e para o meu filho, e as duas convidadas da happy monday, como lhe chamamos, que às vezes é à terça outras à quarta-feira. Um exemplo de flexibilidade. Revejo algumas notas mentais tiradas durante as sessões, planeio o dia seguinte. Estou nesta azáfama enquanto subo a António Augusto de Aguiar. A rua está como de costume: gente a atravessar a passadeira; trotinetas e bicicletas com a urgência das entregas; carros em segunda fila à frente das lojas; ubers a recolher clientes; autocarros a tentar chegar às paragens; carros a saírem do túnel. Subo lentamente. À minha esquerda, entre os carros estacionados por entre as árvores vejo, de relance, uma mulher a empurrar uma cadeira de rodas com esforço: sentado, um homem muito magro, comprido, velho, de aspecto muito frágil. E ela em esforço, com uma das rodas presa nas raízes. O sinal muda. Arranco devagar para parar logo a seguir. O trânsito está congestionado. Curiosa, olho para saber se conseguiu atravessar. Parada atrás de mim está uma mota. Quem a conduz fala com a senhora que empurra a cadeira. Ouço-o sem perceber as palavras que diz. O sinal muda, tenho de avançar. Pelo retrovisor vejo que, indiferente às buzinadelas o motociclista se apeou. Calmamente, ajuda-a a empurrar a cadeira para atravessar a rua.