Há uma espécie de epidemia que parece estar a assolar os pais deste país. E que, duma forma ou doutra, os tem empurrado para quererem fazer dos filhos, muito rapidamente, líderes. Aliás, a forma como se banalizou nas escolas a atribuição a uma criança do estatuto de “líder” é quase inacreditável. E a ligeireza como, mesmo as entidades mais responsáveis, pretendem transformar crianças em líderes tornou-se “viral”. Unicamente porque têm boas notas (não importa como), ou porque têm “uma personalidade muito forte”. Havendo cursos que prometem transformar crianças em líderes, academias de líderes, escolas de líderes e tudo o mais que se possa imaginar. Em nome do modo como, desde muito cedo, os incentivam a mandar, de preferência, nos outros. Tudo bons exemplos, portanto. Tudo muito democrático, claro.

Esta forma muito “team building” do crescimento tem uma versão mais atlética. Observa-se, por exemplo, nas escolas de futebol, onde os pais, em nome de ganhos futuros, transformam o desporto de competição em academias de craques. E, em função disso, um ror de vezes, atropelam os princípios mais elementares do desporto e infernizam filhos, treinadores e adversários. Chegando, com frequência – nos treinos, inclusive – a insultar e a ameaçar, por mais que, à segunda-feira, se insurjam contra os exageros das claques.

Esta vaga parece ir no sentido duma progressão tão cavalgante que, desde as crianças que passam, horas a fio, em castings para serem modelos, aos adolescentes que tentam ser ídolos à custa das concessões mais inacreditáveis ou aqueles que utilizam o YouTube, sem restrições, para ganharem notariedade, à conta das mais diversas bizarrias, ou aos que frequentam cursos para se tornarem influencers, com o auxílio de “propinas” generosas, tudo é possível. Independentemente do curriculum muito questionável das pessoas que “cuidam’ deles, das práticas (dignas de casos de polícias) que, por vezes, elas têm e que, tranquilamente, circulam, na internet. Tudo com o patrocínio, doam-aos, claro. E, em muitos casos, de marcas respeitadas e que, em países amigos do bom senso, passariam a ser colocadas “fora de jogo” pelos próprios pais.

Em primeiro lugar, não fica, de todo, claro o papel dos pais nisto tudo. Serão “facilitadores”, “influenciadores” ou, simplesmente, “seguidores” dos filhos? Porque faz diferença. Sobretudo quando se trata de conversarmos sobre as responsabilidades que pendem sobre eles para merecerem ser pais. Depois, era importante esclarecer-se se pecam por omissão ou se se demitem, quase completamente, das suas responsabilidades como pais. Ou, muito pior, se incentivam e promovem todos estes comportamentos de risco. Seja como for, independentemente das circunstâncias, acabam por expor os filhos ao perigo. Mas alguém os adverte por isso, ao mesmo tempo que delineia medidas de protecção para os seus filhos?

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A seguir, era mesmo indispensável que se fizesse luz perante estas crianças e adolescentes. Ou seja, se eles trabalhassem num fábrica de calçado, teríamos exemplos (reprováveis!) de trabalho infantil. Como ganham cachets nada disto será exploração de crianças. Será assim? Mesmo quando alguns pais parecem viver de patrocínios de marcas e expõem os filhos sem que os seus direitos de imagem sejam, sequer, “taxados” com bom-senso?…

Depois, não seria demais perceber-se com que intuito os pais entram nesta onda. Será porque não são capazes de dizer que não? Porque são ignorados pelos filhos em relação àquilo que querem para eles? Porque vêem nos filhos uma espécie de complemento-reforma? Ou, acima de tudo, porque são movidos à força da notoriedade (que, numa versão mais urbana, será aquilo a que dantes, com outro tipo de clareza, chamávamos, simplesmente, vaidade).

Julgava eu que, primeiro, trabalhávamos muito para construir uma expressão singular, inimitável e única, daquilo que fazemos e, só depois, a notoriedade (e os ganhos desse trabalho) surgiriam. Mas, afinal, faz-se o que for preciso para dar nas vistas, afirma-se e repete-se que se pretende “ser diferente” e, em troco de 10 minutos de fama, tem-se uma reforma dourada. Será isto que os pais têm de melhor para aconselhar aos filhos?

Estamos, portanto, num patamar em que muitos (!!) pais entendem que, primeiro, se pensa no muito dinheiro que se pode ganhar e, só depois, na paixão que se pretende colocar em relação a um trabalho que tenha “a cara” dos seus filhos. À escala daquilo que se passa, estamos todos a ir na onda de, primeiro o dinheiro; depois, a notoriedade. E tudo o resto, por mais matricial que seja e indispensável que pareça, são “amendoins”. E não se trata de se afirmar que estes pais são menos diferenciados. Porque, a outra escala, e considerando a forma como os estudantes escolhem os seus cursos superiores, os valores não fogem muito a esta “regra”. Ou não é verdade que continuam a existir escolas que, ano após ano, fazem batota com as notas e, a bem da forma como os pais enchem a boca com dezanoves e vintes “de aviário”, continuam a lá inscrever os seus filhos, sem que nada os demova, mesmo que refiram, repetidamente, com alarme, a “crise dos valores”?

Não, a crise dos valores começa nos pais. E, nalguns casos, a crise de valores tem o patrocínio exclusivo de marcas prestigiadas. E o apoio de escolas. E tudo enquanto o país clama contra a corrupção! Engraçado não é? Mas, afinal, quem corrompe quem? São as crianças e os adolescentes que se deixam “corromper” em relação àquilo que os pais consideram como fundamental ou são os pais que aceitam que se “subornem” regras, princípios e valores? Não serão eles – os pais – quem, ao mesmo tempo que se insurgem contra a forma como o poder e o dinheiro têm coabitações promíscuas, promovem o crescimento dos seus filhos, parecendo ter como únicos objectivos o poder e o dinheiro? E não estaremos nós, a transformar a internet na Dona Branca dos adolescentes? E não estaremos a comprometer os valores da democracia com o à-vontade que nos deixa a supor que multidões manobráveis representam maiorias esclarecidas?

É inacreditável: o desmazelo destes pais em relação ao respeito que o crescimento dos seus filhos merece, demonstra que muitos — tragicamente, mesmo muitos — estão “doentes” de tão distraídos. E, por favor, poupem-nos a tutoriais para estes  pais. E exija-se, pelo menos, a cada um deles, o bom senso que — qual slogan — eles passam a vida a reclamar para os seus filhos.