O capítulo XXII da primeira parte da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes (1385?-1460?), conta um incidente que não nos ocorre imediatamente quando imaginamos a vida na Idade Média: uma discussão. Fernão Lopes chama a discutir “haver razões”, “responder razões”, “falar razões”, ou “dizer razões.” Dá muita importância a estas actividades verbais; e contrasta-as com situações em que as divergências são resolvidas de outros modos. Num capítulo anterior, D. João, o Mestre de Avis, de maneira caracteristicamente não-verbal, atacara com um cutelo o favorito da cunhada porque “mais vontade tinha de o matar que d’estar com ele em razões.”

Como a maior parte de nós, D. João era um animal complexo: umas vezes explica o que o move, outras esfaqueia quem lhe desagrada, e outras ainda não tem paciência para conversas. O grande mérito de Fernão Lopes é ter sido o primeiro escritor português que se interessou por animais complexos. Prestou por isso atenção ao facto de alguém poder mudar de ideias quando não há um cutelo por perto. Na discussão do capítulo XXII, D. João, a quem as coisas não corriam bem do ponto de vista político, contempla a possibilidade de uma carreira internacional. As suas intenções, diz Fernão Lopes, eram já conhecidas do público: ir viver para Londres, passar a trabalhar para o rei local, e tornar-se rico e famoso.

D. João, conta Fernão Lopes, mudou de ideias por causa das razões de duas outras pessoas. Ambas eram menos importantes do que ele, que era filho do penúltimo rei de Portugal. Lopes refere em pormenor “as razões que Álvaro Vasques houve com o Mestre sobre sua partida para Inglaterra.” Álvaro Vasques era um escudeiro da região centro, mas foi não obstante capaz de explicar a D. João que os seus objectivos pessoais e profissionais podiam ser realizados de modo mais eficiente na “terra . . . donde sois natural.” Apresentou uma análise custo-benefício de recorte clássico.

O argumento tinha sido antecipado pouco antes por outro interlocutor. Chamava-se Rui Pereira; era mais poderoso que Álvaro Vasques, mas menos importante que D. João. Alarmado pelos planos deste, decide dizer “uma … razão contra o Mestre.” Consiste num único argumento: Fernão Lopes descreve-o a apontar para Lisboa, onde se passa a cena, e a declarar: “a mim parece que bom Londres é este.” É uma das melhores analogias da literatura portuguesa. Rui Pereira resiste a dizer que Lisboa é melhor que Londres. Limita-se a observar que, em matérias de futuro profissional e de fama importa mais aquilo que se faz que onde se faz. Lisboa e Londres podem ser ambas cenários adequados para acções recomendáveis; mas o que conta são as acções. Sem esconder a satisfação, Fernão Lopes conclui o capítulo dizendo que o Mestre ouviu tudo com atenção: as razões dos outros dois “pareceram-lhe boas;” e mudou de ideias.

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