“Sua Majestade fora a Belém comer uma merenda.” Começa assim o melhor livro de J. P. Oliveira Martins (1845-1894), o esplêndido Portugal contemporâneo, publicado em 1881. Em dois volumes Oliveira Martins elaborou uma versão da história portuguesa entre 1826 e 1868. Muitos dos seus contemporâneos não gostaram da ideia. Aconselha-se ainda hoje os historiadores a não tentar escrever sobre o presente. Oliveira Martins, ignorou alegremente esses conselhos. Seria porém história aquilo que tinha feito? Teria ele escrito como um verdadeiro historiador? E o que é escrever como um historiador?

O Portugal antigo acabou para Oliveira Martins com a morte do rei D. João VI; e Portugal contemporâneo começa como um romance rural. Nessa altura Belém não fazia parte de Lisboa: era um sítio onde se podia fazer piqueniques e onde imaginamos os visitantes a acampar em cima de uns penhascos, como no conhecido poema de Cesário Verde, onde “penhascos” rima com “damascos.” Não sabemos se a merenda terá sido ao ar livre; mas o rei era conhecido por gostar de comer. A ideia de que uma época inteira acabou no dia em que um rei foi lanchar aos arrabaldes é importante para Oliveira Martins. Foi uma espécie de última tarde portuguesa.

Oliveira Martins conta que o público supôs na altura que o rei tinha sido envenenado: “a peçonha fora propinada nas laranjas da merenda de Belém.” A História conta-nos aquilo que aconteceu realmente; e isso inclui sempre coisas que as pessoas na altura achavam que poderiam ter acontecido. Será a crença num envenenamento menos histórica do que a ocorrência de um piquenique? Muitas centenas de páginas depois, o livro acaba com a morte de D. Pedro V, bisneto de D. João VI, em 1861. Esse segundo rei também teria sido envenenado: “Tinham envenenado o rei! Tinham envenenado tudo!” Acusou-se Portugal contemporâneo de dar voz a boatos e rumores, à opinião inconsistente e indocumentada. Para um historiador, no entanto, boatos e rumores são factos históricos: acontece muitas vezes que as pessoas se referem àquilo que poderia ter acontecido, que não aconteceu, ou que não sabem se aconteceu; é um facto que os nossos antepassados ocasionalmente exageraram.

Um boato não é só por si menos histórico que um piquenique ou uma morte: depende de quem se fala, e de quem come as laranjas ou os damascos. Da mesma maneira, nenhuma frase de um livro de história é só por si historiográfica. A historiografia não é um género literário nem uma região linguística demarcada. Não é porém também um tipo de ficção. O que faz do livro de Oliveira Martins um livro de história não é parecer-se mais ou menos com um romance. É, como em toda a grande história, e ao contrário da história pequena, dar voz ao que pessoas da altura achavam que se poderia estar a passar: aos erros, conjecturas e fantasias de pessoas que existiram.

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