No Crátilo, Platão dizia que “quem conhece o nome conhece as coisas”. “Conhecer” é um verbo complexo, difícil, embora prolífico. De acordo com o dicionário, significa “ter conhecimento de uma coisa, saber que existe e o que é”. Por acaso – ou talvez não – conjuga-se exatamente como “nascer”: é graças às nossas palavras que vimos ao mundo, somos reais, e que os outros têm de nós conhecimento; reconhecem-nos, nascemos. Conhecendo, pois, as raízes das palavras que usamos, consentimos existência àquele mundo antigo, onde o silêncio não era a ausência de palavras supérfluas, mas a comunhão das imprescindíveis.

Como salientava Platão nesse mesmo diálogo, as palavras têm o poder de criar, de moldar a realidade; palavras reais com efeitos igualmente reais sobre o nosso presente. A ausência de palavras torna-se, pois, ausência de realidade; sem palavras não há senão desassossego, artifício e debilidade no meio de um mundo que, fragilizando-nos, não tolera a nossa fragilidade; não consente que nos mostremos fracos, indefesos. Não podemos parecer frágeis, perdidos e com medo. Não nos é permitido sequer sentir a dor à nossa maneira.

Cedo aprendemos a silabar o moderno mantra do desassombro – sou forte! – apenas para descobrir depois que, independentemente da representação que de nós mesmos levamos à cena, há sempre um detalhe – um gesto inseguro, um riso forçado, uma dúvida, um desequilíbrio – que denuncia a distância entre o que fazemos e o que realmente gostaríamos de fazer, entre o que dizemos e o que gostaríamos de dizer.

Não somos um filme, na vida não existe possibilidade de pós-produção e os efeitos especiais esvaziam-se rapidamente. Somos, quando muito, teatro em estreia perene, tragédia ou comédia de nós mesmos, como quando o entardecer caía sobre Siracusa e os atores subiam ao palco para dar início ao espetáculo.

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Vivemos hoje todos presos a uma situação muito estranha, capaz de enorme crueldade. Temos à nossa disposição o repertório mediático mais desmesurado da História e, no entanto, já não sabemos o que comunicar. Nem como, com que palavras. Nem, acima de tudo, com quem. Nunca nos sentimos tão sós.

Estamos todos a tornar-nos tão diabolicamente sintéticos que falar sobre nós nos cansa. Tal é o medo de sermos incompreendidos – ou, pelo contrário, de sermos compreendidos e desmascarados – que tendemos a dizer apenas o necessário, a esconder as coisas, a sermos sempre acessíveis e nunca complexos.

Aos resultados que alcançamos já não chamamos “sucessos” ou “fracassos”, já não falamos em “alegria” ou “dor”; ao nosso sentimento chamamos hoje, com pompa e despudor, performance.

No entretanto, as imagens nos jornais são cada vez maiores e as palavras cada vez mais escassas. Se não transformarmos um conceito numa representação gráfica, num diapositivo, num abstract, tememos que ninguém tenha paciência para nos ouvir. Consideramos a atenção um privilégio: é tão difícil sermos amáveis connosco que parece impossível que os outros o sejam sem segundas intenções; confundimos a amabilidade alheia com uma farsa.

Mercadejámos a infinitude dos nossos pensamentos pelos 140 caracteres de um tweet. Contudo, tendo-nos tornado epigramatistas modernos, revelamo-nos incapazes de lidar com a arte de Calímaco e Catulo; e a verdade é que, num belo dia do outono de 2017, o Twitter, desesperado com a constante sangria de utilizadores, propôs aumentar o limite de caracteres para 280. Gentil concessão do marketing ao nosso fracasso comunicativo.

No lugar de ideias, enviamos avisos, notificações, sinais de fumo do nosso naufrágio e do nosso desespero; as nossas frases têm a cadência da parataxe em que tentamos desesperadamente fazer-nos entender através de emoticons e de orações desconexas, separadas como bolas de borracha saltando para aqui e para ali numa barraca de feira.

Rejeitamos as subordinadas, a dificuldade da hipotaxe, fugimos de tudo o que implique ir ὑπό (hypó) “abaixo” da superfície, para permanecer παρά (pará) “ao lado”, junto à parataxe das coisas e das pessoas que amamos. Recusamos conhecer-nos e, no entretanto, falamos todos como se fôssemos oráculos: já não nos revelamos através de palavras, mas de enigmas.

É um paradoxo delicado, que nada tem de irónico e que exigiria amor e não sorrisos amargos: quanto menos falamos sobre nós, mais revelamos o nosso incómodo e a nossa inquietação, embora o façamos de forma insegura e confusa. E traiçoeira: não creio ser o único a testemunhar o triste espetáculo dessa traição quando alguém, vendo-se desprovido de palavras, acaba por gritar-se através de gestos e urros; uma explosão de raiva injustificada numa carruagem do metro, por exemplo, ou um insulto gratuito no semáforo, palavras e gestos alarves vomitados pela janela antes de uma eloquentíssima fuga.

Houve um tempo em que se desencadeavam verdadeiras revoluções para lograr a liberdade de um amo. Hoje, a palavra “revolução” assusta-nos tanto que preferimos oprimir-nos sozinhos. O nosso silêncio, a nossa solidão, tornaram-se os nossos amos. Não ousar, não perguntar, não reivindicar, não mudar, nunca. A consequência é um estado de ansiedade generalizada que, quando explode – porque, mais cedo ou mais tarde, explode – nos faz sentir profundamente envergonhados e inquietos.

E é precisamente quando oferecemos o pior de nós mesmos a estranhos inocentes que desejamos que a terra nos engula, que apague imediatamente aquela imagem demasiadamente real, sem filtros, de nós. Porque bem lá no fundo sabemos que, quando nos assalta aquela vergonha, é apenas por tudo quanto não fizemos, por tudo quanto não dissemos, há muito, a outra pessoa. Precisamente aquela que, no seu silêncio, nos disse tudo. Nos disse completamente.

Esquecemos que a beleza das coisas frágeis – mais ainda, a das pessoas – reside no serem fiéis à sua essência, sem se esconderem, sem se dizerem fortes a todo o instante, usando uma armadura que, em vez de defender, apenas esconde.

Esquecemos que a fragilidade é o que de mais verdadeiro há em nós; que ser frágil é uma arte a acolher e a cultivar e que apenas a fragilidade e a dor, levadas pela mão do amor, poderão conduzir-nos ao ponto mais profundo do mundo, onde habitam os homens despojados da pretensão inútil e postiça de terem de parecer permanentemente fortes: existir nem sempre é resistir, mas também reparar. Reparar os sonhos, a beleza, a vida – por vezes até a alma – por intermédio de palavras que permitam que o real se revele como aquilo que verdadeiramente é.

Muitos séculos depois de Platão, ao adotar uma ideia de Justiniano, Dante dirá, na sua Vita Nuova, que nomina sunt consequentia rerum (“os nomes são consequências das coisas”), ou seja, as palavras seguem literalmente as coisas, estão acima delas, aderem ao real e permitem que ele exista.

O perigo de permanecermos hoje em silêncio diante do dom da vida, “já não chamando nada nem ninguém pelo nome”, negando ao outro a palavra que apenas nós lhe podemos oferecer, não é apenas o de não conhecermos as coisas, como dizia Platão, mas o de deixarmos de nos conhecermos a nós.