É extraordinariamente curioso que a forma mais eficaz de restringir o pensamento – Orwell dixit – não passe tanto pela criação de novas palavras, mas pelo cerceamento ou eliminação dos sentidos de algumas delas: se algo não puder ser referido, passa a não existir. Como conceber aquilo que não tem nome? A perversidade de qualquer sociedade totalitária não passa tanto pela interdição de menção a factos, mas antes pela restrição das possibilidades de raciocínio.

Na verdade, as línguas, mais do que sistemas de comunicação, são formas de ver o mundo, de o compreender e interpretar: o facto de uma língua dispor de outros números para além de singular e plural; de outros géneros que não o masculino e o feminino; de múltiplos modos verbais ou do infinitivo apenas, não são aleatórias minudências morfossintáticas mas promontórios sobre o mundo, património e comunhão, por intermédio dos quais a melancolia, o amor, a culpa, tudo o que se perdeu, passam a ser possibilidades tão quotidianas como os ruídos da cozinha e a respiração da avó – pequenas fendas por onde a realidade, comezinha e insuperável, se insinua e se queda.

O inesperado que perfura o olhar insurrecto de Winston e Montag não é o extraordinário mas a vulgaridade imprevista, aparentemente banal e rasa, de um quotidiano absurdo e imediato em cujas sílabas, afinal, habita o estremecimento, a elegância, a memória. Ao confessar amar “insensatamente, os ácidos, os gumes / e os ângulos agudos”, Cesário chama a si menestréis e marinhas, autos da visitação e monólogos de vaqueiros, rios que vão por Babilónia e barcos que vão de saída, cais que são saudades de pedra e frotas dos avós – partilha connosco lugarejos de luto e maravilha, recordações de onde, bem-aventurados, afinal nunca chegámos a sair: penhascos de euforia e bruma de onde significado e memória não cessam de se precipitar. Como qualquer grande poeta, em suma.

É a comunhão desse património oculto que permite o verdadeiro acesso às subtilezas de uma língua, aos seus recessos. O domínio de mecanismos linguísticos, por útil que seja, habilita destros e competentes registos, mas jamais aquele insolente atrevimento de ter visto as coisas por dentro. Será essa a razão para as distopias odiarem a poesia e perseguirem como degenerados os que a cultivam?

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Alguns desses dispositivos são comuns a muitas línguas e facilmente reconhecíveis; outros são de tal modo específicos que se tornam quase intraduzíveis: em latim, por exemplo, o particípio presente era uma forma nominal do verbo que, podendo assumir uma função adjetival, equivalia frequentemente a uma oração relativa. Por exemplo, uma amante era, em latim, aquela que ama e não, como no imorredoiro sucesso de Mónica Sintra, “o amor das horas vagas”.

Apesar de terem chegado ao português alguns resquícios de antigos particípios presentes latinos (viajante, amante, pedinte, transeunte…) ora sob a forma de adjectivos ora de nomes, sempre me intrigou que um deles se tivesse quedado pela forma nominal e apenas no feminino (estante – móvel com prateleiras, suporte para partituras) e que a sua versão oracional (estante – aquele que está) tivesse sido completamente obliterada no processo de evolução do português.

Curioso é também que o poder, sobretudo quando opressivo e absoluto, não prescinde de estantes – aqueles que estão e que de uma tribuna oferecem a boca ao ar como cetáceos ao krill – para que simulacros de palavras criem a ideia de, por serem ditas, acontecerem as coisas que referem, ainda que contrárias ao que eles mesmos, digamos, ‘pensam’ ou ao que há pouco mais de uma semana eles mesmos tinham dito: aqueles que estão – andaimes fáticos onde os bonecreiros armam os seus fac-símiles de discurso – são eles mesmos a idealização do discurso totalitário onde não há significado, nem memória, nem compaixão. Uma afirmação pode ser uma negação e uma hesitação pode passar a certeza. Ou vice-versa. No fundo, a verdade – esse colorido catálogo de estampas – é uma questão de perspectiva.

O arrebatamento, todo ele excitação e rebuçados peitorais, com que o Ministério da Justiça anunciou há dias que as Certidões de Óbito passarão a ter uma validade permanente – medida contra a qual o mesmo PS votara ainda em Maio – tem qualquer coisa daquela poética ternura com que uma criança afirma que a noite acabou porque ela e os irmãos conspiraram debaixo dos lençóis pela alvorada. O coro de estantes que encheu o peito de loas aos méritos desta medida foi uma comovente mise-en-scène de sabujice destes bonifrates videirinhos: os gestos mecânicos, a fáscia perioral untuosa e ávida, a ausência de qualquer coisa remotamente parecida com um raciocínio ou com uma ideia, tudo colocado ao serviço daquele homem novo do socialismo – sem memória, sem ideias, sem futuro, senhor do tempo – que, num gesto de magnânima liberalidade semelhante ao de César batizando o mês de Julho, determinou que a morte de um português será, a partir de 1 de setembro, oficialmente para sempre.

De acordo com Aristóteles, a dimensão política do homem desponta da sua faculdade não apenas para falar, mas para dizer a alguém aquilo que as coisas são – úteis ou prejudiciais, justas ou injustas. No fundo, códigos e rituais, constituições e normas, preceitos e regulamentos, a amizade e o amor, tudo isso emerge do facto de o homem precisar de um ser sobre o qual derramar a sua contemplação e alguém (o cristianismo chamar-lhe-á o próximo) a quem dizer o que viu. Que esta visceral necessidade se veja aviltada por estantes, não conspurca apenas a Política, mas envilece aquela irredutível dignidade de se seduzir a eternidade enquanto, como nos versos do título, se ludibria a morte e as regras gramaticais – a Poética.