O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), ao pronunciar-se sobre a regulamentação da lei n.º 90/2021, de 16 de dezembro, que altera o regime jurídico aplicável à Procriação Medicamente Assistida (PMA), vulgo gestação de substituição, veio tornar mais complicado a entrada em vigor da dita lei.

Em concreto, e para sermos objetivos, a confusão que entretanto se instalou fica-se inteiramente a dever ao Presidente da República, já que foi ele a ter a ideia de introduzir no texto legislativo o direito de arrependimento da gestante, a qual passará a ser igualmente uma progenitora, ao permitir-se-lhe a possibilidade de revogar o seu consentimento para entrega do bebé aos pais biológicos, mas só até ao momento em que o mesmo for registado na maternidade, ou até vinte dias após o seu nascimento em qualquer Conservatória do Registo Civil.

Este obstáculo, só por si, esvazia a própria função da chamada barriga de substituição, a qual consiste – e deixo bem claro – numa «técnica de reprodução assistida em que a mulher gera no seu ventre o filho de outra pessoa, renunciando aos direitos de mãe sobre o bebé assim que nasce.» A gestão de substituição só terá efeito útil se a grávida renunciar aos direitos de mãe.

Com tamanha confusão acaba por permitir-se que a gestante adquira o direito de ficar com a criança, e a ser mãe.

Sendo assim,  não surpreende ver o CNECV levantar (e bem) a questão do registo de nascimento, quando a gestante passa a ser mãe e fica com o recém-nascido.

Os progenitores genéticos deverão igualmente assumir a sua condição de progenitores legais e virem a exercer, nos termos que o tribunal de família entender e determinar, as suas responsabilidades parentais.

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Explicando melhor: se a gestante renunciar ao seu direito de mãe, os pais serão exclusivamente os progenitores genéticos. Se a gestante pretender ser mãe e ficar com o bebé, os pais serão os progenitores genéticos  com a gestante.

Falamos de multiparentalidade, ou de tripla filiação, de uma família plural, em que o afeto passa a ser o elemento identificador das relações parentais.

Embora seja uma mudança legislativa importante e com consequências na sociedade, não vislumbro motivos para que esta solução não seja adotada no ordenamento jurídico português. De facto, os princípios do melhor interesse da criança e da solidariedade familiar conduzem a esta conclusão, uma vez que ambos os pais/mãe podem exercer iguais direitos  na vida de uma criança. Estão em causa decisões que apenas reconhecem o que de facto aconteceu, ou seja, um nascimento pela vontade de três pessoas, dois progenitores e uma gestante que, por efeitos legais, se torna mãe.

Nas escrituras do Antigo Testamento, primeira parte da Bíblia, comummente aceite pelos cristãos, na Génesis, cap.16, vv. 1 e 2, Sara, mulher de Abraão, não lhe tinha dado descendência. Porém, possuindo uma escrava egípcia chamada Agar, disse a Abrão: «Posto que o Senhor me fez estéril, rogo-te que tomes a minha escrava para ver se ao menos por ela eu posso ter filhos.»

Desde os tempos primitivos, a esterilidade feminina, em relação à fecundidade, sempre foi vista de forma preconceituosa pela sociedade, representando algo extremamente negativo e, do ponto de vista religioso, como um sinal de castigo divino. «Se Deus te marcou, algum defeito te achou.» constitui eloquente reminiscência medieval que subsiste no adagiário popular português.

Se quisermos podemos sempre encontrar sinais da multiparentalidade na Antiguidade Clássica e, sem grande esforço, apercebermo-nos de que essas famílias  existiam, mas viviam retiradas das ágoras públicas ou suas equivalentes.

O problema, aqui, não se relaciona apenas com adoção e multiparentalidade. Outros problemas surgem de seguida como, por exemplo, o direito a um nome e o direito a obtenção de uma nacionalidade.

Das inúmeras perguntas que, a propósito, se poderão fazer, ocorrem-me imediatamente estas: como será composto o nome? Com os apelidos dos três progenitores? E o nome próprio, quem o escolhe? Se a mãe quiser uma nacionalidade que não seja a portuguesa? E os avós, como regulamentar o seu direito de visita? E, depois, como se fará o pagamento da pensão de alimentos, a escolha da via educacional, a escolha da educação moral-religiosa?

Na sombra vamos continuar sem alternativa para as mulheres que querem ser mães, porque a falta de útero ou doenças incompatíveis as impedem de o ser.

Como se infere de tanta confusão instalada, os que quiserem ser pais o melhor que terão a fazer é procurar clínicas de PMA no estrangeiro, escolhendo um país que garanta segurança jurídica e, depois, registarem o recém-nascido na Conservatória do Registo Civil da localidade onde decidam residir.