A história repetiu-se. Uma criança esquecida no carro pelos pais, morre. Pode acontecer? Pode. Ajuda julgar os pais? Não. Ajuda fazer hashtags que soam a psicologia positiva duvidosa como #podiatersidoeu? Ajuda a opinião de N psicólogos a desculpabilizar? Definitivamente, também não. Uma coisa é ajudar os pais a não voltarem a fazer aquilo, e isso é bastante útil, outra, movimentos virais desculpabilizadores e inconsequentes. Repito a pergunta que fiz ao início: o que ajuda dizer que #podiatersidoeu? O resultado foi um movimento de choro pelos pais, quando devia ter existido um movimento de choro pelos filhos.
Um menino de 2 anos, chamado Noah, anda perdido durante 35 horas pelo campo. Surge a pergunta legítima de qualquer pessoa: “onde estavam os pais”? E os vizinhos e toda a gente é unânime que “coitados dos pais”, são apenas “mais livres” e não têm culpa nenhuma, têm é uma “forma alternativa” de viver. Perdoem-me: se têm uma forma alternativa de viver, arranjem uma forma alternativa de evitar que o miúdo se perca outra vez. Pois, não nos enganemos, estamos todos com estas desculpabilizações dos pais, pois o miúdo não caiu num poço, como, aliás, já aconteceu.
É verdade que os pais são sujeitos a uma exigência atroz nos dias de hoje e vivemos numa sociedade egoísta, mas também não era noutros tempos, em que nem existia eletricidade ou internet e também era difícil (nem apps de vídeo para controlar as crianças)? Aliás, nos casos descritos, os pais têm empregadas, empregos e filhos. Há quem não tenha os três, por isso, os zen e os influencers que se mostram muito compreensivos, pensem um pouco. E existem coisas como ajudas de familiares e de amigos, organização, foco, gestão do tempo e negociação. Não é uma fatalidade. Não é culpa do governo que uma criança morra, não é culpa do clima ou do stress. É culpa tua que és pai e mãe, tens responsabilidade e dever de gerir isso. Handle with that. Ser pai não é um direito, é uma missão e um dever. Ser líder não é buéda fixe, é um serviço.
É um fenómeno que não compreendo e que se repete. A criança morre porque uns pais se esquecem dela. Não se esquecem de uma chave ou da comida no micro-ondas. Foi uma pessoa, uma criança. E as pessoas, em vez de se calarem, começam com o “coitadinhos dos pais”. Não falo em crucificá-los, mas também não falo em desculpabilizar. Falo em “adicionar valor”, como se diz na gestão. E isso é apontar soluções. Não é palmadas nas costas. Isso não os ajuda, pois se não forem apontadas soluções, vai-se repetir. Pais, querem que se repita? Então parem com hashtags e apontem soluções. E a preocupação com os pais, significa dizer-lhes: “parem, se não o dano é maior. Parem, vejam como vai a vossa vida. Repensem as prioridades na vossa vida, senão matam mais crianças”. E dada a viralidade do hashtag #podiatersidoeu, há muitos pais que precisam de um puxão de orelhas, não os filhos.
Já nem falo na necessária criminalização desta negligência, consoante a análise do caso, ou mesmo a retirada da guarda de um filho, na circunstância de se verificar que os pais não são capazes de tomar conta dos filhos. Muitas crianças são institucionalizadas por causa de pais alcoólicos, drogados, violentos, porque não por pais negligentes? Porque não há um movimento de compreensão perante pais drogados e alcoólicos? Todos podemos cair nesses vícios, isso não quer dizer que estejamos capazes da paternidade/ maternidade. Existem tantos a quererem ser pais e outros que não o querem ser. E há a opinião de muitos especialistas que, segundo o nosso sistema de adoção, da fase de descuido, institucionalização, à adoção de crianças, vai um longo caminho de muitos “perdões” do sistema e recaídas dos pais, o que torna este processo muito moroso e penoso para pais que querem adotar e, sobretudo, para as crianças.
É preciso promover um debate sério sobre que sociedade queremos, muito avançada e tecnológica, e onde fica o ser humano? Que prioridades estamos a dar às nossas vidas? Que cultura é esta que chegou ao nível de qualidade de vida mais alta de sempre mas que deixa filhos abandonados nos seus carros? Que forma de pensar é esta que é muito eficiente e próspera mas esquece quem está ao seu lado, se calhar uma mãe ou pai exausto e desamparado?
E há uma mentalidade de passa culpa. Uma mentalidade de culpar alguém por um problema. E a disseminação da psicologia positiva mais duvidosa, e que se tornou cultura. Na psicologia isto também se chama “locus de controle”. As pessoas com mais “locus de controle externo”, acham que a resolução dos problemas consiste numa fonte externa. Os com “locus de controle interno”, ao contrário, pensam que se não forem elas a resolver, ninguém resolverá.
Além disso, nos dias de hoje, o conceito de culpa tornou-se “judaico-cristã”, como diz o psicólogo do artigo do Observador, que cito, mas se a responsabilidade pela criança é do governo e do “stress”, quem cuidará das nossas crianças? Se é culpa do stress ou do governo, mais vale não ter filhos. Os que alegam stress e outras dificuldades, não são os mesmos que evitam os filhos se “não houver condições” para os mesmos ou “mais vale não os ter do que trazer um filho para um mundo cão”? Ninguém fala em judaísmo ou cristianismo, simplesmente ser responsável pelos seus atos. E a perda de uns é a perda de toda uma sociedade. Estamos todos ligados.
Na sessão de informação para adoção de crianças da SCML, a mensagem passada pelas técnicas que fazem a apresentação é assertiva e verdadeira: não pensem que vieram aqui para adquirir um filho e que tudo é rosas. Não, não é. Há este, este, este e este problema. E enumeraram os vários. Penso que ter filhos biológicos não sai muito disto também. Mas, hoje em dia, achamos que a paternidade/ maternidade é um direito e até um comércio. Hoje em dia eu posso ter um filho a qualquer custo ou preço – seja biológica ou artificialmente. Mas ter um filho é uma responsabilidade e vocação. Não é um direito, muito menos um adereço e um troféu. É isto que os pais que protestam na net não percebem. E antes de se desculpabilizarem, por favor, façam-nos um favor, peçam ajuda, seja a família ou amigos, para dividir tarefas; consultem um psicólogo, tirem um curso de gestão do tempo, façam desporto, distribuam tarefas em casal; separem-se, se preciso, mudem de emprego, se preciso; façam meditação mindfulness; sobretudo, giram prioridades na vossa vida – sim, o trabalho não está à frente dos filhos. Sim, ter tudo perfeito não está à frente, pois quanto mais a exigência, mais a queda – façam um favor ao vosso filho e à sociedade – sim, a sociedade também perde com a vossa perda – mudem algo, por favor, se não é a vida que vai mudar por vocês. Não é com hashtags que se muda. Por favor, façam um favor aos vossos filhos e a vós mesmos: organizem-se.