Adorar o poder pelo poder, dar a impressão que se faz, viver debaixo do brilho das aparências, oferecem da política a sensação de que os protagonistas falam como se estivessem dentro de espelhos.

Os espelhos são um fenómeno-limiar, marcam a diferença entre uma reflexão meramente imaginária e a reflexão simbólica. A diferença é que, confrontando-nos com a nossa própria imagem reflectida no espelho, confundimos, no primeiro caso, a imagem com a realidade, ao passo que, no segundo caso, compreendemos claramente que ela é a nossa imagem.

O mesmo não aconteceu com Narciso, nome de um dos mais famosos mitos da Antiguidade grega. Deslumbrado, o jovem adolescente foi incapaz de encontrar distâncias perante si mesmo, fundindo-se com a visão da perfeição da sua imagem reflectida nas águas. Tanto que acabaria consumido pela sua própria visão.

É riquíssima a literatura sobre o conhecimento através dos espelhos, o chamado conhecimento simbólico ou reflexão catóptrica. Tornou-se uma grande metáfora. Ver no espelho equivale a ver através das imagens. Mas as imagens, sendo mediadoras, são apenas um ponto de passagem. Permanecer nelas, como Narciso, equivale a viver na “mentira”.

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A reflexão sobre os espelhos foi particularmente actuante na reflexão política, originando mesmo o aparecimento de um modelo literário especialmente destinado aos governantes, ou putativos governantes, os chamados “espelhos de príncipes”.

Muito popularizados na Idade Média, tanto latina como árabe, vêm da Antiguidade Clássica (século IV a. C.), e o primeiro deles é sem dúvida o «Discurso a Nícocles», de Isócrates. Seguiram-se, depois, muitíssimos outros. Demétrio de Falero (século III a. C), denominado «filósofo do poder», discípulo de Aristóteles, recomendaria a Ptolomeu, rei do Egipto, a leitura «de livros», onde apenas se encontrariam «os conselhos que ninguém ousaria dar». Autores de espelhos de príncipes são também nomes como Séneca, Santo Agostinho, Gregório Magno, Isidoro de Sevilha, João de Orléans, Hincmar de Reims, Al-Ghazâlî, Helinando de Froidmont, João de Salisbúria, Vicente de Beauvais, São Tomás de Aquino, Egídio Romano. Este género de literatura continuaria pelo Renascimento e modernidade. Um dos mais conhecidos é de origem árabe e chama-se «O segredo dos segredos»; apesar de remontar presumivelmente aos séculos VII-VIII, seria muito difundido e comentado posteriormente por toda a Europa, pelo menos até ao século XVII (e traduzido para quase todas as línguas europeias, incluindo o português).

Estes “espelhos” são constituídos por “textos”, cuja leitura é comparada à experiência especular, com todas as implicações e exigências inerentes ao significado de uma reflexão simbólica. Deve o governante, ou candidato a governante, confrontar-se nesse espelho e aprender as regras a seguir para poder levar a cabo um bom governo («seja das comunidades, seja das cidades, seja dos reinos»).

Eis apenas alguns exemplos: “é melhor que os ouvidos dos homens estejam sedentos dos discursos de quem governa do que cansados das suas palavras”; “não se ouve com prazer um governante que enfastia”; “o governante deve evitar familiaridade em demasia”; “se não é possível congregar, não é possível governar”; “o nome dos bons governantes subsiste na saudade, o nome dos maus desaparece imediatamente; se forem muito bons na maldade, também serão lembrados mas com abominação”; “a honra, a glória e o poder são maus na posse do tirano”; “a glória e a fama diferem da honra e do louvor, porque a honra e o louvor são causa da fama e da glória”; “o poder não é mau por natureza, caso contrário os homens bons não poderiam assumir o governo”; “não é a virtude que deve seguir o poder, é o poder que deve seguir a virtude”; “um bom governante comportar-se-á sempre comedidamente, para ser aprovado pelos homens”; “quem busca a glória nas coisas da guerra, reduz a liberdade da pátria ao poder dos inimigos”; “a injustiça ocasiona a mentira, a mentira produz o ódio, o ódio leva à ofensa, a ofensa gera a inimizade, a inimizade desencadeia a guerra, a dissolução das leis e a destruição das cidades”; “o medo faz parecer duvidar quem se aconselha e temer que o acontecimento de algum infortúnio dificulte a consecução do bem desejado”; “não falar com desejo de agradar, mas com verdade, pois os aduladores que procuram agradar ao governante, silenciando a verdade e promulgando o que lhes é vantajoso, colocam em perigo toda a nação”.

O intuito é sempre prescritivo e profiláctico, em nome da moderação e da estabilidade do próprio regime político (elementos exclusivos e nucleares da democracia, segundo Aristóteles, a grande referência política, directa ou indirectamente). Porque, nota-se, é na mediação entre os governantes e os governados, constantemente em risco de interrupção, que reside toda a fragilização do poder, por sua vez fonte de conflitualidade e fragmentação sociais.

O sentimento era já o de que tudo dimana do poder político. Até a felicidade dos indivíduos. Os espelhos introduziam então uma transcendência de ordem simbólica, um “passo à retaguarda”, focando as razões de fundo e a força do implícito que percorre a experiência de todos os governantes. Nos tempos de hoje tudo isso desapareceu. E o motivo não é apenas o condicionamento imposto pelo poder mediático, porventura igualmente vítima do processo. Hoje não são os espelhos que servem e guiam os governantes, são os próprios governantes que pertencem e vivem dentro dos espelhos. Narciso renasceu e parece ter vencido. Assim se explica a ausência de pensamento reflexivo, a incapacidade de guardar distâncias perante si mesmo, os outros e as coisas em geral. O mundo transformou-se numa profunda superfície reflexa. Não há verdade, nem mentira. Só “comunicação” e “afectividade”, rumo ao vazio, polarizando amor e ódio. Gestos ostentosos e nomenclaturas à medida escondem o desprezo pela substância das coisas, a ausência de finalidades intrínsecas, o parecer da vaidade.

A vaidade, diria Max Weber, é uma espécie de doença profissional e um dos pecados mortais de todo o político. A mesma vaidade que é própria dos “fingidores”, “cultos na aparência mas não na realidade”, escreve-se nos espelhos de príncipes. A incapacidade de se confrontar com a sua própria imagem reflectida no espelho é uma daquelas qualidades cujo esquecimento condenará a nossa geração de políticos à impotência política e a não subsistirem na saudade, como também se prognostica nos espelhos a propósito dos maus governantes.