Entre o rebuliço noticioso e a consciência das consequências nefastas da pandemia que atravessamos, aproveitemos, porque nos é dado e é bom, o exemplo da colaboração e da associação dos portugueses em torno da luta contra o vírus. Que este exemplo nos dê alento, e que nos faça notar que, quando a dificuldade é verdadeiramente sentida como nossa, é pouco relevante — de um ponto de vista prático — que haja ou não uma “lei da rolha”, o que nos diga o Governo sobre a disponibilidade de material, que haja ruído nos dados disponibilizados ou que a realidade epidemiológica em Portugal seja descrita em publicações internacionais como um milagre…

O tempo é inexorável, e, para quem sente a realidade em primeira mão (não só os profissionais de saúde, as forças de segurança e a protecção civil, mas também os colaboradores das mercearias, supermercados, distribuidoras, os pequenos empresários, etc.), a evolução dos números, em agregado, face à premência da escassez diária, assume uma importância relativa.

Para evitar ser assolapado pelo frenesim e pela ansiedade inútil, deito olhares apenas breves aos noticiários (embora leia sempre as publicações do Prof. Jorge Buescu que, porque aliando o rigor científico à confissão das limitações dos modelos, cativam a minha atenção). Nesta atitude, selectiva e pedante, denoto uma verdade conspícua: os portugueses, perante uma adversidade de proporção histórica, associam-se; surgem voluntários; vizinhos que se oferecem para fazer as compras uns dos outros, a fim de protegerem os mais vulneráveis de uma exposição ao supermercado ou à farmácia; cidadãos que, por vocação e/ou altruísmo, andam de porta em porta a perguntar pelos outros, oferecendo conforto psicológico salutar àqueles que, confinados, se sentem aflitos; engenheiros e designers que desenham viseiras, empresas que as produzem e que, em alguns casos, as entregam gratuitamente a quem as solicita; cosem-se máscaras, de forma descentralizada, de diferentes formas e feitios, porque as outras escasseiam ou tardam em chegar.

Por trás das máscaras, estão os “pequenos pelotões” de Burke: chamados a agir, unimo-nos; perante a adversidade, lutamos; e na ausência de auxílio, resolvemos. Existirá, em algumas iniciativas, interesse próprio, pessoal, comercial ou promocional? Talvez. Mas é fruto desta acção humana que resulta a menos má das maneiras (que até agora se encontraram) de viver em sociedade.

Para os que pintam uma imagem de genuflexão da direita (com gáudio, apenas seu, por vergar os monstros liberais do laissez faire), contraponhamos esta externalidade positiva da pandemia: a imagem de que o Estado, sozinho, não nos resolve os problemas; é antes um repositório de conteúdos, para o qual todos contribuímos (com dinheiro e não só), do qual esperamos retorno, sobretudo em tempos de crise. Sendo razoável admitir que ninguém poderia estar preparado para uma calamidade desta magnitude, é também certo que, quando debelarmos o vírus, devemos assumir, porque a responsabilidade é nossa, as vitórias (e as derrotas) como nossas.

Talvez seja fatalista, mas creio que a nossa memória é curta e que, assim que a pandemia e as suas consequências desvanecerem (quando, ninguém sabe), voltaremos ao business as usual, na esperança míope e tipicamente humana de que, agora, “só daqui a muito tempo”. Seria bom, no entanto, que prevalecesse, quando os tempos forem menos exigentes, a recordação da união que hoje testemunhamos. Por trás das máscaras, está isto: quem toma conta do que é nosso somos nós.

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